sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Corrupção, camarotização da elite e pipocação do povo

Publicado por Luiz Flávio Gomes - 8 horas atrás
 

Quem está o camarote não quer ser qualquer um. Os mais radicais dizem que camarote não é o lugar “apropriado” para qualquer pessoa. O carnaval traduz com precisão o que significa estar no camarote ou no meio do povo. Enquanto a elite se camarotiza, o povo não cessa sua pipocação (movimentação contínua, agora também para conseguir água ou energia, diante dos racionamentos), ora para ganhar ou celebrar a vida, ora para esquecer os problemas, ora para reclamar de tudo e de todos. Camarotização, em suma (o tema foi objeto do vestibular da USP), significa fazer do cidadão um ser diferenciado. Seria um horizonte cobiçado por todos que nele não estão. Nesse sentido, um incentivo para se lutar pela ascensão individual e social.

Todos nós, desde a docimasia pulmonar hidrostática de Galeno (primeira respiração), pertencemos ou à classe dominante (do camarote) ou às classes subalternas dominadas (da pipocação diária, que começa às 4 da manhã para muita gente). No meio, historicamente conservadoras, mas oscilantes, estão as classes intermediárias. No extremo inferior estão os marginalizados e massivamente oprimidos. Todas as organizações sociais possuem classes (algumas chegam a ter castas fechadíssimas, como é o caso da Índia). Em algumas sociedades a desigualdade entre as classes foi se reduzindo drasticamente (Islândia, por exemplo, que tem: 1,5% de ricaços, 97% de classe média e 1,5% de pobres). Em outras é muito difícil a mobilidade social ascendente (subir de classe), seja porque a desigualdade de oportunidades é brutal e cruel, seja porque muitos tampouco querem promover qualquer de esforço para isso. No grupo dos países extremamente desiguais encontra-se o Brasil, cuja estruturação desigualitária está se tornando (lamentavelmente) uma tendência mundial (“brasilianização do mundo”). Com efeito, a elite econômica (sic) do 1% mais rico possuirá em breve (2016) riqueza equivalente a 99% da população global, conforme a ONG inglesa Oxfam.

O Brasil sempre foi avesso e segregado. Apesar de alguns sociólogos afirmarem que temos a ideologia (mito) da mistura (Gilberto Freyre), na verdade sempre fomos o pior dos apartheids. Em entrevista para Marina Rossi, Rosana Pinheiro-Machado, antropóloga e professora da Universidade de Oxford, afirma que nossa aversão à mistura é o resultado de anos de desigualdade social no país. “O que está por trás [da camarotização] é o desejo de distinção em uma sociedade colonizada como a nossa e marcada por uma grande estratificação social”. A ascensão da classe C (favorecida pela estabilidade econômica de FHC e pela política de distribuição de renda de Lula) foi uma espécie de camarotização (que alterou sensivelmente nossa estratificação social). Os que subiram estão acessando lugares que antes eram exclusivos da elite (voos nacionais e até internacionais, por exemplo). “Isso fez com que o racismo e a discriminação saíssem do armário” (diz a antropóloga). Os assentos-conforto, oferecido por algumas companhias, “muitas vezes é apenas uma desculpa apara agradar o passageiro rico que não quer ter o desprazer de sentar ao lado de sua empregada doméstica”. Não é por acaso que o Brasil, de outro lado, é o 2º colocado no ranking das maiores frotas de jatinhos e helicópteros particulares do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

Corrupção e desigualdade. Afirma-se que a elite detentora de riqueza (do poder econômico, elite “camarotizada”) pode ser vista de forma estática ou dinâmica. Na sua perspectiva dinâmica, ela funciona como uma espécie de estamento executivo (representante) das crenças, valores e ideologias das classes dominantes. O problema grave aparece quando as elites se isolam das demais classes, julgando-se independentes, melhores e superiores que as outras. Quando atuam somente no sentido de deter e manter o poder e o domínio sobre todo o grupo social. Países com a formação histórica do Brasil e de Portugal sempre foram governados ou cogovernados por uma elite econômica autoritária, patriarcalista e tradicionalmente conservadora (Neder, Iluminismo jurídico-penal: 36 e ss.). Ou seja: camarotizada. Sem ter origem democrática, no entanto, é ela que comanda a democracia (normalmente), em razão do poder do dinheiro. Esse poder superdimensionado se conquista licitamente ou por meio da corrupção, que agrava a desigualdade entre as classes (os poderosos por meio da fraude e da corrupção tendem a ampliar suas riquezas, aumentando as desigualdades).

A elite dominante até reconhece as desigualdades, mas repudia, refuta e se nega a praticar qualquer tipo de ato político em favor do combate a elas. Odeia e rejeita a ideia da tributação mais intensa da riqueza ou da herança (como sugerido por Piketty). Ou mesmo da renda. Daí a preferência no Brasil pela tributação prioritária do consumo. A elite atua em benefício próprio (sem pensar no todo). A organização social (para ela) deve ter o tamanho dos seus privilégios, dos quais não aceita abrir mão. Não arreda das suas vantagens pessoais ou de classe, mesmo que por razões de justiça fosse certa (ou mais rentável) uma política distributiva. Todos os membros das classes dominantes que contestam (ostensiva ou clandestinamente) a ideia da educação de qualidade para todos em período integral, por exemplo, fazem parte da ideologia da minoria dominante, que constitui o paradigma da atuação isolada, desprendida do todo social.

Saiba mais

Que se entende por elite?

A palavra elite é utilizada em todo momento (tanto nas redes comunicacionais como no mundo acadêmico e nas conversas informais). Mas, o que se entende por elite? De acordo com o dicionário Houaiss, significa duas coisas: (1) “o que há de mais valorizado e de melhor qualidade, especialmente em um grupo social” [nesse sentido Ortega y Gasset usava essa palavra no seu livro La rebelión de las masas]; (2) “minoria que detém o prestígio e o domínio sobre o grupo social”. Do ponto de vista etimológico, como se vê, a palavra elite traduz a ideia “do que há de melhor”, quem é eleito ou escolhido “por ser o melhor”. Considerando-se a história mundial, de plano se percebe a impregnância (a desaderência, a impertinência) do primeiro sentido da palavra elite para designar os detentores do poder econômico. O segundo sentido é muito mais forte e pregnante (Francisco Bosco, Globo 25/6/14), sobretudo quando se suprime a palavra “prestígio”.

Elite e ideologia

Não é verdade que todos os membros das classes sociais dominantes ou mesmo todos os mais ricos (da plutocracia) façam parte da elite ideológica dominadora (ou seja: da sua forma de pensar). Muitos não se identificam com a ideologia dominante. Muito menos concordam com a perpetuação das desigualdades extremas e estruturais (não conjunturais). Da elite ideológica dominante, em suma, fazem parte os que defendem todos os mecanismos de perpetuação das desigualdades estruturais (na educação, nas oportunidades de trabalho, nos salários, nos melhores empregos, no consumo diferenciado, na renda, na riqueza, no capital cultural e emocional etc.). Quem pensa e age no sentido da manutenção dos privilégios assim como das desigualdades referidas compõe a elite ideológica dominante (independentemente da cor da pessoa). Excepcionalmente pode-se pertencer à classe dominante (ser um grande empresário, por exemplo) sem ser um adepto de todo o pensamento da elite dominante, que reproduz seu pensamento por meio das escolas e universidade, meios de comunicação, das expressões culturais etc.

Conceito político, social e moral

A preocupação central da elite ideológica dominante é a preservação da estrutura social vigente. Outra preocupação não menos relevante é com a manutenção da ordem. Ela teme eventuais rebeliões das classes subalternas ou oprimidas. Há, assim, uma preocupação obsessiva com a ordem social. Ela coloca seus interesses acima de qualquer outra classe e até mesmo do bem comum (quando há conflito entre eles). Seu temor mortal é o de que, uma vez aberta a ordenação social à redefinição, eclodiria um processo revolucionário incontrolável, conducente ao socialismo [cubano, bolivariano, venezuelano, norte-coreano etc.] (veja Darcy Ribeiro, Teoria do Brasil: 106). O conceito de elite ideológica dominante, como se vê, tem conotação política, social e moral. Não importa tanto a cor da pelé. Nem é necessário que esse dominador faça parte da restrita plutocracia (grupo das maiores riquezas). Sim, é imprescindível que conteste a ideia de justiça social em favor de todos, de estado de bem-estar, de qualidade de vida para todos, de oportunidade para todos crescerem na vida etc.

Que se entende por “elite branca”?

No Brasil, a primeira elite constituída foi predominantemente europeia (portuguesa). Ela dominava os índios, os negros, os mestiços, os mulatos, os brancos pobres e a classe média incipiente. Por ter origem europeia, ela foi (pejorativamente) chamada (muitas vezes) de “elite branca” (quando Dilma foi vaiada, na Copa do Mundo, Lula disse que isso era coisa da “elite branca”). Que se entende por elite branca? O conceito nos remete a tem duplo significado: (a) fenotípica (elite de pelé branca) e (b) simbólica (elite de pelé mulata ou mestiça, que pensa da mesma maneira que a elite branca) (veja Francisco Bosco, Globo 25/6/14). Em ambos os casos, o “branco” significa a pessoa “socialmente identificada como pertencente ao grupo social privilegiado (o que domina o grupo social), que não é discriminado”. (Francisco Bosco, Globo 25/6/14).

Ausência de projeto nacional comum

Haverá saúde nacional, dizia Ortega y Gasset (citado: 68), “na medida em que cada uma das classes e associações tenha viva consciência de que é ela meramente um parte inseparável, um membro do corpo público (…) Abandonado em sua própria inclinação, cada grupo acaba por perder toda sensibilidade para a interdependência social, toda noção dos seus próprios limites e aquela disciplina que mutuamente se impõem as entidades ao exercerem pressão umas sobre outras e sentirem-se viver juntos”. Sem aspirar qualquer tipo de projeto nacional comum (como poderia ser o da eliminação máxima possível da corrupção), cada parte procura conservar o quinhão conquistado e, havendo espaço, até aumentar suas conquistas, predominando, destarte, o individualismo ou particularismo (cada um por si e ninguém por todos) assim como a absoluta falta de solidariedade intergrupal, que revela a inexistência de noção de que a “convivência nacional é uma realidade ativa e dinâmica, não uma coexistência passiva e estática como se fosse um monte de pedras nas bordas de um caminho” (Ortega y Gasset). Quando todos se unem em torno de um projeto comum (o combate à corrupção, exemplificativamente, seria um deles) a sociedade se torna mais compacta e vibra integralmente de polo a polo. A vida e a energia de cada um se multiplicam, nenhum esforço é inútil e tudo isso gera ondas de transmissão psicológica muito positivas. Somente as nações que conseguem a façanha da solidariedade intergrupal (cada grupo respeitando as necessidades da outro) é que prosperam sustentavelmente, sem distúrbios contínuos que colocam em xeque a própria unidade nacional.

Brasil unificado, mas não unitário

Um dos grandes feitos do Império (após a Independência do Brasil, 1822) foi a unificação territorial e política do país. Tratou-se de uma grande articulação étnica e política. Mas isso não significou uma sociedade unitária. Logo que declarada a unificação nacional, já começaram a aparecer as divergências, os grupos, as novas classes sociais, as entidades de classe, os corporativismos, cada qual com sua atmosfera, com seus princípios e interesses, com seus hábitos, valores e ideologias. Como sublinha Ortega y Gasset (España invertebrada: 67 e ss.), “O processo de unificação em que se organiza uma grande sociedade conta com o contraponto do processo diferenciador que divide aquela em classes, grupos profissionais, ofícios, grêmios”. É verdade que não existe país sem divisões internas. O problema sobressai e se agrava a cada dia quando estas partes do todo não contam com um projeto nacional comum (como, por exemplo, o decidido combate à corrupção); isso ocorre quando completamente ausente a ideia de que cada grupo depende do outro (o capitalismo necessita do consumidor, que necessita de poder aquisitivo – riqueza ou salário -, que necessita do patronato para ter trabalho, que necessita da matéria prima, que necessita do produtor etc.).

“Não é necessário nem importante que as partes de um todo social coincidam em seus desejos e suas ideias; o necessário e importante é que conheça cada uma e de certo modo viva os [desejos] das outras” (Ortega y Gasset). Quando não existe o respeito aos outros nem o reconhecimento das necessidades dos outros, perde-se a sensibilidade tátil, elimina-se a possibilidade de concessões recíprocas. É dessa maneira que se chega ao isolacionismo (como se somente uma categoria ou grupo existisse). A vida social brasileira constitui um extremado exemplo deste atroz particularismo (isolacionismo, individualismo). O Brasil até hoje não soube construir uma nação, com projetos comuns. Um conjunto de agrupamentos estanques não forma uma nação, sim, um conglomerado de desejos e aspirações antagônicas e inconciliáveis. Afirma-se que os políticos não se preocupam com os interesses do país, sim, somente dos seus e os daqueles os financiam. Em geral se trata de uma afirmação verdadeira, porém, incompleta, porque também para a sociedade bastante majoritária eles não existem (Ortega y Gasset).

A verdade é que, ressalvados alguns momentos isolados, as classes dominantes se preocupam pouco com as intermediárias e estas pouco com as subalternas e, todas juntas, quase nada com as oprimidas e marginalizadas. Vive cada uma dentro do seu hermetismo, ignorando-se as demais. Trata-se de um conglomerado que pode ser muita coisa, menos uma sociedade. O desastre é previsível se tomamos em consideração o que dizia Aristóteles: “fora da sociedade [muito bem organizada] o humano é uma besta ou um deus”. Como a divindade depende de um ato sobrenatural que não está ao alcance dos humanos, só resta a alternativa da bestialidade para exprimir as sociedades que vivem no isolacionismo, no particularismo, no individualismo.

Disponível em:  http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/162259549/corrupcao-camarotizacao-da-elite-e-pipocacao-do-povo?utm_campaign=newsletter-daily_20150123_639&utm_medium=email&utm_source=newsletter

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