O garantismo estudado aqui é o garantismo do século XX. O garantismo clássico é do
século XVIII, de quando os iluministas desenharam um modelo de intervenção penal com
respeito aos direitos e garantias. Quando há um modelo penal que observa direitos e garantias,
esse é um modelo garantista. O modelo garantista se inicia a partir do momento em que há
um Direito Penal com princípios que objetivam a contenção do poder punitivo. Quando há
princípios que objetivam a contenção do poder punitivo, há também, indubitavelmente, um
catálogo de direitos e garantias para os cidadãos.
No final do século XX, em 1989, Luigi Ferrajoli escreveu o livro Direito e Razão, com o
subtítulo Teoria do Garantismo Penal. Esse livro tornou-se uma grande referência do que viria
a ser chamado de garantismo penal ou garantismo penal neoclássico. Ferrajoli desenhou um
sistema garantista em que haveria um catálogo de direitos mínimos e esse catálogo estaria
na esfera do não decidível.
A esfera do não decidível é uma pequena esfera de direitos que não estão em discussão,
nem mesmo pela totalidade de pessoas. É importante lembrar que a democracia não é apenas
o governo da maioria. O governo da maioria em que a maioria decide matar a minoria, por
exemplo, não é uma democracia, mas uma ditadura da maioria. Em uma democracia, é necessário respeitar a opinião da maioria, mas preservar uma esfera de direitos da minoria.
Não poderia haver, por exemplo, um plebiscito para decidir se a maioria pode escravizar a
minoria. Ainda que 90% das pessoas votassem que sim, isso não seria democrático, pois
é necessário preservar uma esfera mínima de direitos que Ferrajoli chama de esfera do
não decidível.
Ferrajoli desenhou postulados que caracterizariam o sistema garantista. Haveria dez
postulados do sistema garantista e, nesses postulados, haveria um sistema mais ou
menos garantista, ou seja, quanto maior a observância dos postulados, mais garantista seria
o sistema, e quanto menor a observância dos postulados, menos garantista seria o sistema.
Os seis primeiros postulados são de Direito Penal e os quatro subsequentes são de Direito
Processual Penal.
a. Não há pena sem crime:
Esse é o princípio da exteriorização do fato. Se não for praticado o fato e ele ainda estiver
sendo cogitado, não é possível considerá-lo como crime, logo, não há pena sem crime. Na
visão de Ferrajoli, as contravenções penais seriam inconstitucionais, pois violariam o princípio
da subsidiariedade do Direito Penal.
Se há contravenção penal, é porque o Estado está reconhecendo que o fato não é tão
grave – pois, se fosse grave, seria considerado crime. Não sendo grave, seria possível abdicar
do Direito Penal e aplicar outras instâncias de controle. Por isso, na visão de Ferrajoli, as
contravenções penais são violadoras do princípio da subsidiariedade.
b. Não há crime sem lei:
Não há crime sem lei anterior que o defina, não apenas sem prévia cominação legal.
Esse é o princípio da legalidade.
c. Não há lei sem necessidade
Trata-se do princípio da intervenção mínima.
d. Não há necessidade sem lesão/ofensa
Trata-se do princípio da lesividade. Não há necessidade da lei penal se não houver ofensa
a bem jurídico.
e. Não há lesão sem ação
A ação positiva é a ação propriamente dita e a ação negativa é a omissão. Não há lesão
sem a conduta humana penalmente relevante.
f. Não há ação sem culpabilidade:
Trata-se do princípio da culpabilidade.
g. Não há culpabilidade sem processo
Trata-se do princípio da jurisdicionalidade ou princípio da necessidade do processo.
Somente é possível haver a aplicação de uma pena se houver um processo penal. Não
há como reconhecer a culpabilidade que irá gerar a aplicação de uma pena sem haver
processo penal.
h. Não há processo sem autor
Trata-se do sistema acusatório. O juiz não pode iniciar o processo penal. Quem acusa não
julga e quem julga não acusa. Não há processo sem autor/acusação. Antes da Constituição
de 1988, existia o procedimento judicialiforme, que era um processo penal iniciado de ofício
pelo próprio juiz.
i. Não há autor sem provas
Trata-se do princípio da inocência, ou seja, a distribuição do ônus da prova é para a
acusação. Cabe à acusação o ônus de provar a culpabilidade do réu, não ao réu provar sua
inocência.
j. Não há provas sem defesa
Trata-se do direito de ampla defesa, ou seja, direito de a defesa se pronunciar sobre as
provas que são produzidas.
Esses são os dez postulados que formam o sistema garantista. Essas garantias são
mínimas. Tendo o sistema garantista a observância de mais ou menos postulados, ele será
mais ou menos garantista na visão de Ferrajoli.
O professor Douglas Fisher defende a ideia de que, no Brasil, é feita uma interpretação
do garantismo de Ferrajoli muito voltada para o réu. O garantismo interpretado no Brasil,
portanto, seria um garantismo hiperbólico monocular.
O garantismo hiperbólico monocular é uma crítica feita por alguns autores brasileiros
à forma como é interpretada e aplicada a doutrina de Ferrajoli no Brasil. Esses autores
entendem que a interpretação brasileira tende, exclusivamente ou quase exclusivamente, à
observância dos direitos do réu, mas, na verdade, a doutrina de Ferrajoli também depende
da observância dos direitos da vítima (individual ou coletiva).
Obs.: “Hiperbólico” significa “superdimensionado” e “monocular” significa que a interpretação
considera apenas os direitos do réu.
Por isso, a doutrina no Brasil defende a implantação de um garantismo penal integral, que
observe não apenas os direitos do réu, mas os direitos da sociedade e da vítima. Os críticos
a essa teoria no Brasil afirmam que, na verdade, essa é uma invenção brasileira, pois a teoria
de Ferrajoli já contempla esse ponto e não seriam necessárias outras tecnologias.
Ferrajoli não era abolicionista, mas um crítico do abolicionismo que defendia a existência
de um sistema punitivo e a observância não apenas da vedação ao excesso punitivo, mas
também da vedação à proteção insuficiente ou deficiente. Os críticos, por isso, afirmam que
não seria necessário criar novas tecnologias como o garantismo hiperbólico monocular, pois
o garantismo penal propriamente dito de Ferrajoli já contemplaria todas essas hipóteses.