quinta-feira, 26 de março de 2015

A Condição Humana - Hannah Arendt




O domínio público é o espaço que, quando existe e não está obscurecido, tem como função, como Arendt observou, iluminar a conduta humana, permitindo a cada um mostrar, para o melhor e para o pior, através de palavras e ações, quem é e do que é capaz.

O pensar, o querer e o julgar são as três atividades mentais básicas, cuja análise, segundo Arendt, permitiria a compreensão da existência racional. A Condição Humana examina a vita activa, fazendo o contraponto com a vita contemplativa, analisada em A Vida Mental. Naquela obra, ela se propõe a examinar o que é específico e o que é genérico na condição humana, através do estudo de três atividades fundamentais que integram a vita activa: labor, trabalho e ação.

O labor é atividade assinalada pela necessidade e concomitante futilidade do processo biológico, do qual deriva, uma vez que é algo que se consome no próprio metabolismo, individual ou coletivo. É animal laborans na medida em que os homens o compartilham com os animais.

O trabalho, ao contrário do labor, não está necessariamente contido no repetitivo ciclo vital da espécie. É através do trabalho que o homo faber cria coisas extraídas da natureza, convertendo o mundo em espaço de objetos partilhados pelo homem. O habitat humano torna-se diferente de qualquer ambiente natural, pleno de objetos que se interpõem entre a natureza e o ser humano, unindo e separando os homens entre si. Por exemplo, lembremos dos PCs interpostos entre seres humanos, mas facilitando muitíssimo a comunicação em tempo real.

A ação, afirma Arendt, é “a única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria”. Corresponde à condição humana de pluralidade, ao fato de que homens e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição de toda vida política.

Ação, na obra de Arendt, representa não só medium da liberdade, enquanto capacidade de reger o próprio destino, como também a única forma da expressão da singularidade individual. No labor, o homem revela suas necessidades corporais, no trabalho, sua capacidade e criatividade artesanal; na ação, a ele mesmo. A ação é a fonte do significado da vida humana. É a capacidade de começar algo novo, por exemplo, um blog, que permite ao indivíduo revelar sua identidade.

Na sua pesquisa sobre o marxismo, ainda segundo Celso Lafer, essa filósofa alemã deu-se conta de que, nessa tradição, havia modalidades de conceber as atividades abrangidas pela vita activa que refletiam obtusidade em relação ao domínio público e aquilo que era especificamente político: a palavra e a ação. Arendt procurava refletir sobre o significado da ação política e iluminar a importância do domínio público, resgatando-a da opacidade em que se encontrava na tradição do pensamento político, particularmente no da esquerda.

Segundo Arendt, “o essencial é compreender”. É processo complexo, atividade incessante, sempre variada e em mudança, por meio do qual nos ajustamos ao real. A compreensão é criadora de sentido que se enraíza no próprio processo da vida na medida em que tentamos, através dela, conciliar-nos como nossas ações e nossas paixões. Novamente, é convite para se compreender o papel contemporâneo da constituição de redes sociais via internet.

Arendt estava tentando compreender, em A Condição Humana, as origens do isolamento e do desenraizamento, sem os quais não se instaura o totalitarismo, entendido como nova forma de governo e dominação. É baseada na organização burocrática das massas, no terror e na ideologia.
O isolamento destrói a capacidade política, ou seja, a faculdade de agir. É aquela situação de impasse na qual os homens se vêem quando a esfera política de suas vidas, onde agem em conjunto na realização de interesse comum, é destruída. O isolamento, que é a base de toda tirania, não consegue atingir, no entanto, a esfera privada da inteligência humana. No totalitarismo, busca-se também o desenraizamento, que desagrega a vida privada e destrói as ramificações sociais. Não ter raízes significa não ter no mundo algum lugar reconhecido e garantido pelos outros. O sentimento de “ser supérfluo” traz a dor de não pertencer ao mundo de forma alguma.

A conjugação de isolamento, destruidor das capacidades políticas, e desenraizamento, destruidor das capacidades de relacionamento social, que permite a dominação totalitária. Nas palavras de Arendt, “o homem isolado que perdeu seu lugar no terreno político da ação, é também abandonado pelo mundo das coisas, quando já não é reconhecido como homo faber, mas tratado como animal laborans, cujo necessário ‘metabolismo com a natureza’ não é do interesse de ninguém”. Trata-se do sentimento de levar “vida vegetativa”, esperando apenas a hora da morte, quando se livrará desse fardo.
O isolamento e o desenraizamento são conseqüência do mundo cujos valores maiores são ditados pelo labor, e no qual o próprio homo faber viu-se degradado, na sociedade contemporânea, à condição de animal laborans. A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte. A gente quer prazer para aliviar a dor…

Politicamente, não existimos isolados, mas coexistimos. Daí a tensão entre a filosofia, na qual o pensar é a dualidade do diálogo coerente do eu consigo mesmo, e a política, na qual a pluralidade exige estar sempre ligado  [on line em tempo real?] aos outros, pois se podemos pensar por conta própria, só podemos agir em conjunto. Esta diferença de postura é a razão pela qual muitos “filósofos” (professores universitários e/ou intelectuais profissionais) tendem a ser hostis em relação a toda política.  Por isso, Arendt afirma que a natalidade, e não a mortalidade, é a categoria central do pensamento político. Afasta-se, então, da tradição da vita contemplativa de meditar a respeito da mortalidade, foco de toda a tradição do pensamento metafísico e religioso, preocupada apenas com a experiência do eterno. Esta ocorre no singular, suscitada por esse tipo de meditação isolada.

A esperança provém da natalidade. O medo, da mortalidade. Não são conservadoras a reflexão e a proposta que se colocam sob o signo da esperança e que vê na ação que a natalidade enseja, a permanente e igualitária capacidade de começar algo novo.

Conforme Arendt (1981: 189-190), “é com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico. Não nos é imposto pela necessidade, como o labor, nem se rege pela utilidade, como o trabalho. Pode ser estimulado, mas nunca condicionado pela presença dos outros, em cuja companhia desejamos estar; seu impacto decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos, e ao qual respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa”.

No momento em que se começa algo novo – um simples blog sem finalidade comercial – por meio de determinada ação política – motivação de debate coletivo via rede social de assinantes, subscrições e comentários –, a preocupação não é com o eu, mas com o mundo. O que é decisivo, aponta Arendt, é a clareza na motivação: nós mesmos, a nossa alma, ou o mundo. A preocupação maior com a política, isto é, com o estar entre os homens, e não tanto com a salvação da alma, significa que o interesse maior é a Respublica, sem deixar de se importar consigo mesmo enquanto corpo e alma.

Liberdade não é a concepção neoliberal de não-interferência na esfera privada, mas sim a liberdade pública de participação democrática. A liberação da necessidade não se confunde com a liberdade. Esta exige espaço próprio: o espaço público da palavra e da ação.

Este espaço é fundamental porque existem no mundo muitos e decisivos assuntos que requerem escolha que não pode encontrar seu fundamento no campo da certeza. O debate público existe, afirma Arendt, para lidar com aquelas coisas de interesse coletivo que não são suscetíveis de serem regidas pelos rigores da cognição e que não se subordinam, por isso mesmo, ao despotismo do caminho de mão única de uma só verdade.

Daí, para Arendt, a importância do nós, do agir conjunto, que se dá entre os homens e do qual nasce o poder, entendido como recurso gerado pela capacidade dos membros de alguma comunidade política [mesmo que seja virtual] de concordarem com determinado curso comum de ação. “Sem o povo ou um grupo não há poder”, diz a radical democrata.

A palavra, no processo de geração de poder, tem não só a dimensão de comunicação, mas também a de revelação: a revelação de perda do espaço público pela cassação da palavra. Isto é o que ocorre na situação-limite do totalitarismo. A web pode ser bem utilizada contra o poder de cassação da palavra, exercido hoje por editores, seja na mídia, seja entre os universitários.

Neste Livro de Cabeceira, A Condição Humana, Hannah Arendt mostra como ação, palavra e liberdade não são coisas dadas, mas requerem, para surgirem, a construção e a manutenção do espaço público. A vocação da liberdade, que assegura esse espaço público, exige coragem para expor o ser em público. A ação para a liberdade, mais do que o trabalho coletivo de elaborar, cotidianamente, este simples blog, exige a auto-revelação humana no seio dessa comunidade política no qual existe espaço público.

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