Publicado por Luiz Flávio Gomes - 8 horas atrás
Quem
está o camarote não quer ser qualquer um. Os mais radicais dizem que
camarote não é o lugar “apropriado” para qualquer pessoa. O carnaval
traduz com precisão o que significa estar no camarote ou no meio do
povo. Enquanto a elite se camarotiza, o povo não cessa sua pipocação
(movimentação contínua, agora também para conseguir água ou energia,
diante dos racionamentos), ora para ganhar ou celebrar a vida, ora para
esquecer os problemas, ora para reclamar de tudo e de todos.
Camarotização, em suma (o tema foi objeto do vestibular da USP),
significa fazer do cidadão um ser diferenciado. Seria um horizonte
cobiçado por todos que nele não estão. Nesse sentido, um incentivo para
se lutar pela ascensão individual e social.
Todos nós, desde a
docimasia pulmonar hidrostática de Galeno (primeira respiração),
pertencemos ou à classe dominante (do camarote) ou às classes
subalternas dominadas (da pipocação diária, que começa às 4 da manhã
para muita gente). No meio, historicamente conservadoras, mas
oscilantes, estão as classes intermediárias. No extremo inferior estão
os marginalizados e massivamente oprimidos. Todas as organizações
sociais possuem classes (algumas chegam a ter castas fechadíssimas, como
é o caso da Índia). Em algumas sociedades a desigualdade entre as
classes foi se reduzindo drasticamente (Islândia, por exemplo, que tem:
1,5% de ricaços, 97% de classe média e 1,5% de pobres). Em outras é
muito difícil a mobilidade social ascendente (subir de classe), seja
porque a desigualdade de oportunidades é brutal e cruel, seja porque
muitos tampouco querem promover qualquer de esforço para isso. No grupo
dos países extremamente desiguais encontra-se o Brasil, cuja
estruturação desigualitária está se tornando (lamentavelmente) uma
tendência mundial (“brasilianização do mundo”). Com efeito, a elite
econômica (sic) do 1% mais rico possuirá em breve (2016) riqueza
equivalente a 99% da população global, conforme a ONG inglesa Oxfam.
O
Brasil sempre foi avesso e segregado. Apesar de alguns sociólogos
afirmarem que temos a ideologia (mito) da mistura (Gilberto Freyre), na
verdade sempre fomos o pior dos apartheids. Em entrevista para
Marina Rossi, Rosana Pinheiro-Machado, antropóloga e professora da
Universidade de Oxford, afirma que nossa aversão à mistura é o resultado
de anos de desigualdade social no país. “O que está por trás [da
camarotização] é o desejo de distinção em uma sociedade colonizada como a
nossa e marcada por uma grande estratificação social”. A ascensão da
classe C (favorecida pela estabilidade econômica de FHC e pela política
de distribuição de renda de Lula) foi uma espécie de camarotização (que
alterou sensivelmente nossa estratificação social). Os que subiram estão
acessando lugares que antes eram exclusivos da elite (voos nacionais e
até internacionais, por exemplo). “Isso fez com que o racismo e a
discriminação saíssem do armário” (diz a antropóloga). Os
assentos-conforto, oferecido por algumas companhias, “muitas vezes é
apenas uma desculpa apara agradar o passageiro rico que não quer ter o
desprazer de sentar ao lado de sua empregada doméstica”.
Não é por acaso que o Brasil, de outro lado, é o 2º colocado no ranking
das maiores frotas de jatinhos e helicópteros particulares do mundo,
atrás apenas dos Estados Unidos.
Corrupção e desigualdade. Afirma-se
que a elite detentora de riqueza (do poder econômico, elite
“camarotizada”) pode ser vista de forma estática ou dinâmica. Na sua
perspectiva dinâmica, ela funciona como uma espécie de estamento
executivo (representante) das crenças, valores e ideologias das classes
dominantes. O problema grave aparece quando as elites se isolam das
demais classes, julgando-se independentes, melhores e superiores que as
outras. Quando atuam somente no sentido de deter e manter o poder e o
domínio sobre todo o grupo social. Países com a formação histórica do
Brasil e de Portugal sempre foram governados ou cogovernados por uma
elite econômica autoritária, patriarcalista e tradicionalmente
conservadora (Neder, Iluminismo jurídico-penal: 36 e ss.). Ou
seja: camarotizada. Sem ter origem democrática, no entanto, é ela que
comanda a democracia (normalmente), em razão do poder do dinheiro. Esse
poder superdimensionado se conquista licitamente ou por meio da
corrupção, que agrava a desigualdade entre as classes (os poderosos por
meio da fraude e da corrupção tendem a ampliar suas riquezas, aumentando
as desigualdades).
A elite dominante até reconhece as
desigualdades, mas repudia, refuta e se nega a praticar qualquer tipo de
ato político em favor do combate a elas. Odeia e rejeita a ideia da
tributação mais intensa da riqueza ou da herança (como sugerido por
Piketty). Ou mesmo da renda. Daí a preferência no Brasil pela tributação
prioritária do consumo. A elite atua em benefício próprio (sem pensar
no todo). A organização social (para ela) deve ter o tamanho dos seus
privilégios, dos quais não aceita abrir mão. Não arreda das suas
vantagens pessoais ou de classe, mesmo que por razões de justiça fosse
certa (ou mais rentável) uma política distributiva. Todos os membros das
classes dominantes que contestam (ostensiva ou clandestinamente) a
ideia da educação de qualidade para todos em período integral, por
exemplo, fazem parte da ideologia da minoria dominante, que constitui o
paradigma da atuação isolada, desprendida do todo social.
Saiba mais
Que se entende por elite?
A
palavra elite é utilizada em todo momento (tanto nas redes
comunicacionais como no mundo acadêmico e nas conversas informais). Mas,
o que se entende por elite? De acordo com o dicionário Houaiss,
significa duas coisas: (1) “o que há de mais valorizado e de melhor
qualidade, especialmente em um grupo social” [nesse sentido Ortega y
Gasset usava essa palavra no seu livro La rebelión de las masas];
(2) “minoria que detém o prestígio e o domínio sobre o grupo social”.
Do ponto de vista etimológico, como se vê, a palavra elite traduz a
ideia “do que há de melhor”, quem é eleito ou escolhido “por ser o
melhor”. Considerando-se a história mundial, de plano se percebe a
impregnância (a desaderência, a impertinência) do primeiro sentido da
palavra elite para designar os detentores do poder econômico. O segundo
sentido é muito mais forte e pregnante (Francisco Bosco, Globo 25/6/14), sobretudo quando se suprime a palavra “prestígio”.
Elite e ideologia
Não
é verdade que todos os membros das classes sociais dominantes ou mesmo
todos os mais ricos (da plutocracia) façam parte da elite ideológica
dominadora (ou seja: da sua forma de pensar). Muitos não se identificam
com a ideologia dominante. Muito menos concordam com a perpetuação das
desigualdades extremas e estruturais (não conjunturais). Da elite
ideológica dominante, em suma, fazem parte os que defendem todos os
mecanismos de perpetuação das desigualdades estruturais (na educação,
nas oportunidades de trabalho, nos salários, nos melhores empregos, no
consumo diferenciado, na renda, na riqueza, no capital cultural e
emocional etc.). Quem pensa e age no sentido da manutenção dos
privilégios assim como das desigualdades referidas compõe a elite
ideológica dominante (independentemente da cor da pessoa).
Excepcionalmente pode-se pertencer à classe dominante (ser um grande
empresário, por exemplo) sem ser um adepto de todo o pensamento da elite
dominante, que reproduz seu pensamento por meio das escolas e
universidade, meios de comunicação, das expressões culturais etc.
Conceito político, social e moral
A
preocupação central da elite ideológica dominante é a preservação da
estrutura social vigente. Outra preocupação não menos relevante é com a
manutenção da ordem. Ela teme eventuais rebeliões das classes
subalternas ou oprimidas. Há, assim, uma preocupação obsessiva com a
ordem social. Ela coloca seus interesses acima de qualquer outra classe e
até mesmo do bem comum (quando há conflito entre eles). Seu temor
mortal é o de que, uma vez aberta a ordenação social à redefinição,
eclodiria um processo revolucionário incontrolável, conducente ao
socialismo [cubano, bolivariano, venezuelano, norte-coreano etc.] (veja
Darcy Ribeiro, Teoria do Brasil: 106). O conceito de elite
ideológica dominante, como se vê, tem conotação política, social e
moral. Não importa tanto a cor da pelé. Nem é necessário que esse
dominador faça parte da restrita plutocracia (grupo das maiores
riquezas). Sim, é imprescindível que conteste a ideia de justiça social
em favor de todos, de estado de bem-estar, de qualidade de vida para
todos, de oportunidade para todos crescerem na vida etc.
Que se entende por “elite branca”?
No
Brasil, a primeira elite constituída foi predominantemente europeia
(portuguesa). Ela dominava os índios, os negros, os mestiços, os
mulatos, os brancos pobres e a classe média incipiente. Por ter origem
europeia, ela foi (pejorativamente) chamada (muitas vezes) de “elite
branca” (quando Dilma foi vaiada, na Copa do Mundo, Lula disse que isso
era coisa da “elite branca”). Que se entende por elite branca? O
conceito nos remete a tem duplo significado: (a) fenotípica (elite de
pelé branca) e (b) simbólica (elite de pelé mulata ou mestiça, que pensa
da mesma maneira que a elite branca) (veja Francisco Bosco, Globo 25/6/14).
Em ambos os casos, o “branco” significa a pessoa “socialmente
identificada como pertencente ao grupo social privilegiado (o que domina
o grupo social), que não é discriminado”. (Francisco Bosco, Globo 25/6/14).
Ausência de projeto nacional comum
Haverá
saúde nacional, dizia Ortega y Gasset (citado: 68), “na medida em que
cada uma das classes e associações tenha viva consciência de que é ela
meramente um parte inseparável, um membro do corpo público (…)
Abandonado em sua própria inclinação, cada grupo acaba por perder toda
sensibilidade para a interdependência social, toda noção dos seus
próprios limites e aquela disciplina que mutuamente se impõem as
entidades ao exercerem pressão umas sobre outras e sentirem-se viver
juntos”. Sem aspirar qualquer tipo de projeto nacional comum (como
poderia ser o da eliminação máxima possível da corrupção), cada parte
procura conservar o quinhão conquistado e, havendo espaço, até aumentar
suas conquistas, predominando, destarte, o individualismo ou
particularismo (cada um por si e ninguém por todos) assim como a
absoluta falta de solidariedade intergrupal, que revela a inexistência
de noção de que a “convivência nacional é uma realidade ativa e
dinâmica, não uma coexistência passiva e estática como se fosse um monte
de pedras nas bordas de um caminho” (Ortega y Gasset). Quando todos se
unem em torno de um projeto comum (o combate à corrupção,
exemplificativamente, seria um deles) a sociedade se torna mais compacta
e vibra integralmente de polo a polo. A vida e a energia de cada um se
multiplicam, nenhum esforço é inútil e tudo isso gera ondas de
transmissão psicológica muito positivas. Somente as nações que conseguem
a façanha da solidariedade intergrupal (cada grupo respeitando as
necessidades da outro) é que prosperam sustentavelmente, sem distúrbios
contínuos que colocam em xeque a própria unidade nacional.
Brasil unificado, mas não unitário
Um
dos grandes feitos do Império (após a Independência do Brasil, 1822)
foi a unificação territorial e política do país. Tratou-se de uma grande
articulação étnica e política. Mas isso não significou uma sociedade
unitária. Logo que declarada a unificação nacional, já começaram a
aparecer as divergências, os grupos, as novas classes sociais, as
entidades de classe, os corporativismos, cada qual com sua atmosfera,
com seus princípios e interesses, com seus hábitos, valores e
ideologias. Como sublinha Ortega y Gasset (España invertebrada:
67 e ss.), “O processo de unificação em que se organiza uma grande
sociedade conta com o contraponto do processo diferenciador que divide
aquela em classes, grupos profissionais, ofícios, grêmios”. É verdade
que não existe país sem divisões internas. O problema sobressai e se
agrava a cada dia quando estas partes do todo não contam com um projeto
nacional comum (como, por exemplo, o decidido combate à corrupção); isso
ocorre quando completamente ausente a ideia de que cada grupo depende
do outro (o capitalismo necessita do consumidor, que necessita de poder
aquisitivo – riqueza ou salário -, que necessita do patronato para ter
trabalho, que necessita da matéria prima, que necessita do produtor
etc.).
“Não é necessário nem importante que as partes de um todo
social coincidam em seus desejos e suas ideias; o necessário e
importante é que conheça cada uma e de certo modo viva os [desejos] das
outras” (Ortega y Gasset). Quando não existe o respeito aos outros nem o
reconhecimento das necessidades dos outros, perde-se a sensibilidade
tátil, elimina-se a possibilidade de concessões recíprocas. É dessa
maneira que se chega ao isolacionismo (como se somente uma categoria ou
grupo existisse). A vida social brasileira constitui um extremado
exemplo deste atroz particularismo (isolacionismo, individualismo). O
Brasil até hoje não soube construir uma nação, com projetos comuns. Um
conjunto de agrupamentos estanques não forma uma nação, sim, um
conglomerado de desejos e aspirações antagônicas e inconciliáveis.
Afirma-se que os políticos não se preocupam com os interesses do país,
sim, somente dos seus e os daqueles os financiam. Em geral se trata de
uma afirmação verdadeira, porém, incompleta, porque também para a
sociedade bastante majoritária eles não existem (Ortega y Gasset).
A
verdade é que, ressalvados alguns momentos isolados, as classes
dominantes se preocupam pouco com as intermediárias e estas pouco com as
subalternas e, todas juntas, quase nada com as oprimidas e
marginalizadas. Vive cada uma dentro do seu hermetismo, ignorando-se as
demais. Trata-se de um conglomerado que pode ser muita coisa, menos uma
sociedade. O desastre é previsível se tomamos em consideração o que
dizia Aristóteles: “fora da sociedade [muito bem organizada] o humano é
uma besta ou um deus”. Como a divindade depende de um ato sobrenatural
que não está ao alcance dos humanos, só resta a alternativa da
bestialidade para exprimir as sociedades que vivem no isolacionismo, no
particularismo, no individualismo.
Disponível em: http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/162259549/corrupcao-camarotizacao-da-elite-e-pipocacao-do-povo?utm_campaign=newsletter-daily_20150123_639&utm_medium=email&utm_source=newsletter
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