quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Palestra: Delação Premiada e da Justiça consensuada

08/01/2015 por Luiz Flávio Gomes


01. É preciso distinguir a origem da Justiça consensuada (como sistema válido de forma generalizada para a solução de conflitos penais) da origem da delação premiada (instrumento de negociação penal disponível apenas para alguns crimes e/ou criminosos). Quando consideramos exclusivamente o instituto da delação premiada, sabe-se que ela já estava prevista nas Ordenações Filipinas, que começou a vigorar em 1603 (por ato de Felipe II da Espanha, Felipe I de Portugal) e que foi a base do direito português (e brasileiro) até à promulgação das sucessivas Constituições e Códigos, que foram acontecendo até o século XX (Constituição de 1824, Código Penal de 1830, Código de Processo Penal de 1832, Código Civil de 1916 etc.). As citadas Ordenações previam, no crime de lesa majestade, ou seja, traição contra o rei ou contra o Estado real, a possibilidade de perdão para o traidor, desde que não fosse o líder do grupo e delatasse (dedurasse) todos os participantes do delito.

02. A delação premiada, no direito contemporâneo (e, mais precisamente, depois da redemocratização), aparece em 1990, por força da Lei 8.072/90 (lei dos crimes hediondos), que no seu art. 8°, parágrafo único, prevê a redução da pena para o “participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha”. Essa lei também acrescentou o § 4°, ao art. 159 do Código Penal (extorsão mediante sequestro), estendendo o mesmo benefício ao coautor do crime (desde que houvesse a recuperação da pessoa sequestrada). Posteriormente, o instituto surgiu na primeira lei das organizações criminosas (Lei n° 9.034/95), já revogada; no seu art. 6° previa a redução da pena, desde que “a espontânea colaboração do agente levasse ao esclarecimento de infrações penais e de sua autoria”. Hoje, como se sabe, essa lei já não vigora, posto que revogada pela Lei 12.850/13, que regulamentou com detalhes a colaboração premiada. A lei de lavagem de capitais (Lei n° 9.613/98) ampliou o leque de favores, prevendo, além da redução da pena (ou sua substituição), seu cumprimento em regime semiaberto ou aberto e a possibilidade do perdão judicial (art. 1°, § 5°). Esse regramento foi mantido pela Lei 12.683/12 (que alterou a anterior lei de lavagem de capitais).

03. Benefícios idênticos foram contemplados na lei de proteção de vítimas e testemunhas (Lei n° 9.807/99, arts. 13 e 14), porém, com o detalhe de que este foi o primeiro texto que possibilitou a delação premiada em qualquer tipo de crime. A lei de drogas (Lei n° 11.343/2006), no art. 41, possui previsão de redução da pena àquele que, voluntariamente, contribuir com a investigação e o processo criminal. E, mais recentemente, a Lei n° 12.529/2001, que estruturou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, permite que o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), firme acordo de leniência que “impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência” (art. 87), com a posterior extinção da punibilidade caso cumprido o acordo. Em todos os crimes cometidos por meio de organização criminosa também se tornou possível a delação premiada, agora por força da recente Lei 12.850/13, que veio suprir uma séria lacuna do nosso direito, que previa a delação, mas não cuidava dos detalhes do seu procedimento (isso constituía uma fonte de muita insegurança jurídica). Aliás, para os críticos, mesmo após essa regulamentação minuciosa continua a insegurança, porque a delação pode dar margem a muitos abusos. 

04. Mesmo antes da eclosão do escândalo da Petrobras, sabe-se que foi utilizado o instituto da delação premiada. No caso Banestado, que investigou a atuação de poderosos criminosos no mercado paralelo de dólar, o doleiro Alberto Youssef fez delação premiada, tendo recebido redução de penas. Posteriormente descumpriu o acordo e acabou sendo condenado por corrupção ativa. Agora está fazendo nova delação no caso Petrobras (Operação Lava Jato). No processo do mensalão do PT (há também, não se pode esquecer, o mensalão do PSDB, em Minas Gerais), dois operadores foram beneficiados pelo perdão judicial (Lucio Funaro e José Carlos Batista), em razão da delação que fizeram. O delator do mensalão do PT (Roberto Jefferson), mesmo não tendo feito acordo formal, acabou sendo beneficiado com a diminuição da sua pena e concessão do regime semiaberto.

Saiba mais:
05. Como sistema global de resolução dos conflitos penais a Justiça consensuada (ou negociada) tem origem (no século XX) nos Estados Unidos da América que, seguindo a tradição anglo-saxônica, criaram um peculiar procedimento para permitir a negociação penal não só na criminalidade pequena ou média, sim, em todo e qualquer tipo de delito. A denominada “justiça pactada ou contratada ou negociada” está centrada, especialmente, sobre a plea bargaining (ver sobre esse instituto Maynard, Figueiredo Dias e Costa Andrade, Armenta Deu, Peña Cabrera, Diego Díez, Soares de Albergaria, Rodríguez García etc.). O mais conhecido modelo de plea bargaining é o que consiste no seguinte: uma vez que se dá conhecimento da acusação – qualquer que seja o crime – para o imputado, pede-se a pleading, isto é, para se pronunciar sobre a culpabilidade; se se declara culpado (pleads guilty) – se confessa – opera-se a plea, é dizer, a resposta da defesa e então pode o juiz, uma vez comprovada a voluntariedade da declaração, fixar a data da sentença (sentencing), ocasião em que se aplicará a pena (geralmente “reduzida” – ou porque menos grave ou porque abrangerá menos crimes -, em razão do acordo entre as partes), sem necessidade de processo ou veredito (trial ou veredict); em caso contrário, abre-se ou continua o processo e entra em ação o jurado.

06. As vantagens deste sistema, dentre outras, são: a) permite um pronto julgamento da maioria dos assuntos penais (hoje cerca de 97% dos processos são resolvidos dessa maneira, segundo informação do Juiz Federal norte americano Jeremy D. Fogel, da Califórnia); b) evita os efeitos negativos que a “demora” do processo provoca, sobretudo para o imputado preso; c) facilita uma pronta “reabilitação” do infrator; d) com menos recursos humanos e materiais – economia – são julgados mais casos – eficiência – etc.

07. Dentre as desvantagens são citadas: o menosprezo pelos princípios da inocência, da verdade real, do contraditório etc., a sua injustiça porque há, com frequência, flagrante “desigualdade” entre os negociadores, a falta de publicidade, sua pressão e coação psicológicas, sua manipulação política etc. Essas críticas resultam em grande parte invalidadas quando o “acordo” emana efetivamente da livre manifestação da vontade do implicado, sempre assistido, ademais, por profissional técnico. Cabe considerar que tanto na plea bargaining como na delação premiada brasileira, a negociação não conta com a presença do juiz (que conta apenas com o papel de homologador).

08. O modelo de Justiça pactada (ou consensuada ou negociada) prosperou, sobretudo, depois da Segunda Guerra Mundial, quando aumentou notavelmente a criminalização dos comportamentos sociais nos EUA. Foi o meio encontrado pelos norte-americanos para enfrentar o grande volume de processos judiciais. Conta hoje com o apoio inclusive do Tribunal Supremo (v. nesse sentido Almagro Nosete, 1989, p. 154). Inglaterra e Holanda possuem mecanismos praticamente idênticos à plea bargaining dos Estados Unidos; pode-se dizer a mesma coisa da Áustria no que se refere ao uso e posse de entorpecentes (assim Costa Andrade). Nesse rol ainda temos que inserir a Itália, com seu patteggiamento, que nada mais é que uma Justiça negociada para os crimes dos mafiosos.

09. Não se pode confundir, no entanto, a plea bargaining norte-americana (que é cabível em relação a qualquer infração), com o “arquivamento do caso” inspirado no princípio da oportunidade adotado pela Alemanha (nesse caso o arquivamento só é possível nos chamados crimes de pequena ou média gravidade). Não cabe confundir, de outra parte, a plea bargaining com a plea guilty, que é a conformidade simples do acusado com a pena solicitada pelo acusador, porém sem bargain (sem negociação, sem transação) (v. sobre a distinção Fairén-Guillén). No Brasil, como se sabe, a possibilidade dessa Justiça negociada adveio com a Lei dos Juizados Criminais (Lei 9.099/95), mas apenas no âmbito das infrações de menor potencial ofensivo (crimes com pena não superior a dois anos).

 Fonte:  http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/origens-da-delacao-premiada-e-da-justica-consensuada/14866





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