01. É preciso distinguir a origem
da Justiça consensuada (como sistema válido de forma generalizada para a
solução de conflitos penais) da origem da delação premiada (instrumento
de negociação penal disponível apenas para alguns crimes e/ou
criminosos). Quando consideramos exclusivamente o instituto da delação
premiada, sabe-se que ela já estava prevista nas Ordenações Filipinas,
que começou a vigorar em 1603 (por ato de Felipe II da Espanha, Felipe I
de Portugal) e que foi a base do direito português (e brasileiro) até à
promulgação das sucessivas Constituições e Códigos, que foram
acontecendo até o século XX (Constituição de 1824, Código Penal de 1830,
Código de Processo Penal de 1832, Código Civil de 1916 etc.). As
citadas Ordenações previam, no crime de lesa majestade, ou seja, traição
contra o rei ou contra o Estado real, a possibilidade de perdão para o
traidor, desde que não fosse o líder do grupo e delatasse (dedurasse)
todos os participantes do delito.
02. A delação premiada, no direito contemporâneo
(e, mais precisamente, depois da redemocratização), aparece em 1990, por
força da Lei 8.072/90 (lei dos crimes hediondos), que no seu art. 8°,
parágrafo único, prevê a redução da pena para o “participante e o
associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha”. Essa lei
também acrescentou o § 4°, ao art. 159 do Código Penal (extorsão
mediante sequestro), estendendo o mesmo benefício ao coautor do crime
(desde que houvesse a recuperação da pessoa sequestrada).
Posteriormente, o instituto surgiu na primeira lei das organizações
criminosas (Lei n° 9.034/95), já revogada; no seu art. 6° previa a
redução da pena, desde que “a espontânea colaboração do agente levasse
ao esclarecimento de infrações penais e de sua autoria”. Hoje, como se
sabe, essa lei já não vigora, posto que revogada pela Lei 12.850/13, que
regulamentou com detalhes a colaboração premiada. A lei de lavagem de
capitais (Lei n° 9.613/98) ampliou o leque de favores, prevendo, além da
redução da pena (ou sua substituição), seu cumprimento em regime
semiaberto ou aberto e a possibilidade do perdão judicial (art. 1°, §
5°). Esse regramento foi mantido pela Lei 12.683/12 (que alterou a
anterior lei de lavagem de capitais).
03. Benefícios idênticos foram contemplados na lei
de proteção de vítimas e testemunhas (Lei n° 9.807/99, arts. 13 e 14),
porém, com o detalhe de que este foi o primeiro texto que possibilitou a
delação premiada em qualquer tipo de crime. A lei de drogas (Lei n°
11.343/2006), no art. 41, possui previsão de redução da pena àquele que,
voluntariamente, contribuir com a investigação e o processo criminal.
E, mais recentemente, a Lei n° 12.529/2001, que estruturou o Sistema
Brasileiro de Defesa da Concorrência, permite que o Cade (Conselho
Administrativo de Defesa Econômica), firme acordo de leniência que
“impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da
leniência” (art. 87), com a posterior extinção da punibilidade caso
cumprido o acordo. Em todos os crimes cometidos por meio de organização
criminosa também se tornou possível a delação premiada, agora por força
da recente Lei 12.850/13, que veio suprir uma séria lacuna do nosso
direito, que previa a delação, mas não cuidava dos detalhes do seu
procedimento (isso constituía uma fonte de muita insegurança jurídica).
Aliás, para os críticos, mesmo após essa regulamentação minuciosa
continua a insegurança, porque a delação pode dar margem a muitos
abusos.
04. Mesmo antes da eclosão do escândalo da
Petrobras, sabe-se que foi utilizado o instituto da delação premiada. No
caso Banestado, que investigou a atuação de poderosos criminosos no
mercado paralelo de dólar, o doleiro Alberto Youssef fez delação
premiada, tendo recebido redução de penas. Posteriormente descumpriu o
acordo e acabou sendo condenado por corrupção ativa. Agora está fazendo
nova delação no caso Petrobras (Operação Lava Jato). No processo
do mensalão do PT (há também, não se pode esquecer, o mensalão do PSDB,
em Minas Gerais), dois operadores foram beneficiados pelo perdão
judicial (Lucio Funaro e José Carlos Batista), em razão da delação que
fizeram. O delator do mensalão do PT (Roberto Jefferson), mesmo não
tendo feito acordo formal, acabou sendo beneficiado com a diminuição da
sua pena e concessão do regime semiaberto.
Saiba mais:
05. Como sistema global de resolução dos conflitos
penais a Justiça consensuada (ou negociada) tem origem (no século XX)
nos Estados Unidos da América que, seguindo a tradição anglo-saxônica,
criaram um peculiar procedimento para permitir a negociação penal não só
na criminalidade pequena ou média, sim, em todo e qualquer tipo de
delito. A denominada “justiça pactada ou contratada ou negociada” está
centrada, especialmente, sobre a plea bargaining (ver sobre esse
instituto Maynard, Figueiredo Dias e Costa Andrade, Armenta Deu, Peña
Cabrera, Diego Díez, Soares de Albergaria, Rodríguez García etc.). O
mais conhecido modelo de plea bargaining é o que consiste no seguinte:
uma vez que se dá conhecimento da acusação – qualquer que seja o crime –
para o imputado, pede-se a pleading, isto é, para se pronunciar sobre a
culpabilidade; se se declara culpado (pleads guilty) – se confessa –
opera-se a plea, é dizer, a resposta da defesa e então pode o juiz, uma
vez comprovada a voluntariedade da declaração, fixar a data da
sentença (sentencing), ocasião em que se aplicará a pena (geralmente
“reduzida” – ou porque menos grave ou porque abrangerá menos crimes -,
em razão do acordo entre as partes), sem necessidade de processo ou
veredito (trial ou veredict); em caso contrário, abre-se ou continua o
processo e entra em ação o jurado.
06. As vantagens deste sistema, dentre outras, são:
a) permite um pronto julgamento da maioria dos assuntos penais (hoje
cerca de 97% dos processos são resolvidos dessa maneira, segundo
informação do Juiz Federal norte americano Jeremy D. Fogel, da
Califórnia); b) evita os efeitos negativos que a “demora” do processo
provoca, sobretudo para o imputado preso; c) facilita uma pronta
“reabilitação” do infrator; d) com menos recursos humanos e materiais –
economia – são julgados mais casos – eficiência – etc.
07. Dentre as desvantagens são citadas: o
menosprezo pelos princípios da inocência, da verdade real, do
contraditório etc., a sua injustiça porque há, com frequência, flagrante
“desigualdade” entre os negociadores, a falta de publicidade, sua
pressão e coação psicológicas, sua manipulação política etc. Essas
críticas resultam em grande parte invalidadas quando o “acordo” emana
efetivamente da livre manifestação da vontade do implicado, sempre
assistido, ademais, por profissional técnico. Cabe considerar que tanto
na plea bargaining como na delação premiada brasileira, a negociação não
conta com a presença do juiz (que conta apenas com o papel de
homologador).
08. O modelo de Justiça pactada (ou consensuada ou
negociada) prosperou, sobretudo, depois da Segunda Guerra Mundial,
quando aumentou notavelmente a criminalização dos comportamentos sociais
nos EUA. Foi o meio encontrado pelos norte-americanos para enfrentar o
grande volume de processos judiciais. Conta hoje com o apoio inclusive
do Tribunal Supremo (v. nesse sentido Almagro Nosete, 1989, p. 154).
Inglaterra e Holanda possuem mecanismos praticamente idênticos à plea
bargaining dos Estados Unidos; pode-se dizer a mesma coisa da Áustria no
que se refere ao uso e posse de entorpecentes (assim Costa Andrade).
Nesse rol ainda temos que inserir a Itália, com seu patteggiamento, que
nada mais é que uma Justiça negociada para os crimes dos mafiosos.
09. Não se pode confundir, no entanto, a plea bargaining norte-americana (que é cabível em relação a qualquer infração), com o “arquivamento do caso” inspirado no princípio da oportunidade adotado pela Alemanha (nesse caso o arquivamento só é possível nos chamados crimes de pequena ou média gravidade). Não cabe confundir, de outra parte, a plea bargaining com a plea guilty, que é a conformidade simples do acusado com a pena solicitada pelo acusador, porém sem bargain (sem negociação, sem transação) (v. sobre a distinção Fairén-Guillén). No Brasil, como se sabe, a possibilidade dessa Justiça negociada adveio com a Lei dos Juizados Criminais (Lei 9.099/95), mas apenas no âmbito das infrações de menor potencial ofensivo (crimes com pena não superior a dois anos).
Fonte: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/origens-da-delacao-premiada-e-da-justica-consensuada/14866
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