Giselle Câmara
Groeninga[1]
As perícias psicológicas são instrumentos cada vez mais
fundamentais nas demandas judiciais de famílias que necessitam de equilíbrio no
exercício das funções parentais. Equilíbrio perdido, ou mesmo nunca atingido,
nas crises decorrentes das separações — em sentido lato —, e em discussões a
respeito do exercício do poder familiar. Equilíbrio que deve ser ponderado
levando-se em conta os interesses e necessidades de crianças, adolescentes e,
também, dos adultos. Interesses e direitos que devem ser necessariamente
complementares numa família.
Em nossos dias, ponderar o necessário equilíbrio quanto
ao exercício da função exercida por cada qual numa família representa uma
dificuldade maior, visto que as funções, materna e paterna, não guardam mais a
clara especificidade de outrora, em tempos em que são mais amplamente
compreendidas as necessidades dos filhos, e dada crescente importância aos
aspectos afetivos.
A relativamente clara e objetiva responsabilidade que
cabia a cada ator da cena familiar ganhou outras nuances, inclusive com a
consciência de que os aspectos subjetivos, emocionais, se operacionalizam nos
vínculos, nas formas de relacionamento, nas diversas possibilidades de
convivência.
Em suma, o exercício do poder familiar e da
responsabilidade parental abrange aspectos materiais e existenciais, num
amálgama entre fatores objetivos e subjetivos que, nas demandas judiciais, cabe
esclarecer com o auxílio das perícias.
Aos especialistas da Psicologia cabe o uso de lentes
próprias à sua formação para descobrir o que de latente há no manifesto das
demandas judiciais. O latente, as motivações não tão claras para o leigo, podem
esconder tanto aspectos legítimos quanto ao exercício das funções, como podem
mascarar aspectos egoístas que, indevidamente e inconscientemente, animam as
demandas em nome do exercício das funções materna e paterna e em nome dos
filhos.
Cabe, então, sob a ótica das perícias, decantar o cantado
Princípio do Superior Interesse da Criança e do Adolescente. Como demonstram
alguns exemplos do cotidiano das varas de Família, o referido princípio
mascara, muitas vezes, entre outros, interesses egoístas como um luto pela
perda da conjugalidade ou da(o) companheiro(a), sentimentos de exclusão e
rejeição, sentimentos de ciúmes para com aqueles que agora são alvos dos afetos
antes dirigidos ao par desfeito.
As ações na área do Direito de Família são especialmente
complexas, e, se não for compreendida a dinâmica psicológica que as anima,
essas tendem a se repetir, apenas mudando seu objeto. Assim é que, mesmo quando
firmados bem formulados acordos, ou julgadas questões aparentemente
“resolvidas”, estas retornam travestidas por outros objetos, agora alvo de
disputa. Questões quanto ao patrimônio transformam-se em questões quanto aos
alimentos e mesmo em disputas quanto ao exercício da guarda. “Resolve-se” uma
demanda, ressurge outra. Uma dinâmica que necessita de análise para se
modificar.
As perícias são, por definição, prenhes de expectativas e
de subjetividade. E, nesse contexto, estão imersas as partes, os operadores
jurídicos e, por maior que seja o preparo, também os profissionais da
Psicologia e do Serviço Social. Some-se a isso a judicialização dos conflitos,
as condições de trabalho muitas vezes inadequadas e as diversas expetativas em
relação às perícias (avaliação da dinâmica familiar, diagnóstico de
psicopatologias, proteção dos interesse das crianças e adolescentes, de sua
integridade mental, quando não da física). Sendo que algumas expectativas
transcendem o próprio objeto das perícias (investigação da ocorrência objetiva
de fatos, mediações e acordos, abordagem psicoterapêutica e outras).
E há, ainda, a bem conhecida pressão dos prazos, em área
em que o tempo da subjetividade absolutamente não corresponde ao tempo da
objetividade dos prazos processuais.
Nesse contexto, especialmente delicado e adverso,
encontramos por vezes até avaliações elaboradas com base em apenas uma ou duas
entrevistas. E, ainda, ferindo o que seria, do ponto de vista da Psicologia, a
ausência do direito ao contraditório, é feita avaliação somente da suposta
vítima nos graves casos de denúncia de violência e de abuso sexual. Situações
que, por sua vez, denunciam um contexto relacional doente, de que padece não
somente um dos membros da família.
Muitas vezes, é como se aos profissionais da Psicologia
se atribuísse uma capacidade de enxergar, quase que por magia, aspectos que por
natureza são de evidente difícil percepção e análise. E o pior é quando esses
profissionais acreditam ter tal faculdade. Alguns peritos, sob intensa pressão,
colocados indevidamente numa posição idealizada e de certo isolamento face à
dinâmica judicial, e dada a ausência de colaboração por parte de assistentes
técnicos psicólogos, podem acabar por se defender padecendo, de forma caricata
do que tomo a liberdade de denominar, de “juizite”.
Certo é que as perícias, além de merecerem uma
compreensão que leve em conta a dificuldade da tarefa e as expectativas
desmedidas de que são alvo, deveriam contar com a colaboração de outros
profissionais da Psicologia, faculdade prevista em lei, que possam acrescentar
conhecimento e mesmo contrabalançar a subjetividade inerente à essas
avaliações.
Observo que às sentenças cabem recursos, já aos laudos,
se feitos somente por um especialista, e se não for nomeado assistente técnico,
cabem somente as críticas dos advogados, que, por mais interessados e sensíveis
que sejam, são leigos no assunto.
Fundamental o concurso de colegas de visão dos peritos
psicólogos, os assistentes técnicos, em seara tão prenhe de subjetividade, da
qual absolutamente não estão infensos os peritos; aliás, muito pelo contrário,
pois a estes tocam justamente as questões mais subjetivas.
De grande valia, e obedecendo a outra dinâmica — a da
Psicologia —que deve necessariamente compreender as relações como
complementares e dinâmicas — em seus aspectos conscientes e inconscientes —,
deve ser a colaboração dos assistentes técnicos.
Surpreende que, justamente nessa área, muitas vezes a
possibilidade e direito em nomear assistente técnico não são nem sequer discutidos
com as partes. A intenção pode ser a de poupar os assistidos de ainda mais
despesas — estas que são, na verdade, um importante investimento.
Os assistentes técnicos têm a oportunidade de avaliar
outros aspectos aos quais o perito, por circunstâncias, não tem acesso, devendo
estes profissionais levar ao conhecimento daquele suas análises, discutir
conclusões e encaminhamentos.
A inerente subjetividade das avaliações e mesmo
limitações e circunstâncias do trabalho pericial em muito deveria ganhar com
essa colaboração. Observo que a dinâmica entre os profissionais da Psicologia
deve, por definição, ser diversa da compreensão, muitas vezes parcial e oposta,
dos representantes das partes, imersos em litígios que demandam a ponderação de
outros profissionais.
É certo que, lamentavelmente, muitas vezes observa-se uma
confusão de funções. E se o perito acaba, por vezes, sofrendo de “juizite”, o
assistente técnico pode, num desvio de sua função, sofrer de “advocatite”,
defendendo uma parte em vez de contribuir para a ampliação da compreensão da
dinâmica relacional. Quando impera tal dinâmica, põe-se a perder um importante
instrumento de auxílio de compreensão, elaboração e encaminhamento das demandas
judicias.
O novo Código de Processo Civil trouxe uma inegável
valorização dos aspectos subjetivos, afetivos, relacionais e da Psicologia, com
a valorização das perícias, devendo o juiz contar inclusive com o
acompanhamento de especialistas nas audiências.
Lugar comum falarmos de mudança de paradigma, modelos nos
quais fundamentamos nosso conhecimento, nossos valores. E os novos paradigmas
implicam também em procedimentos por meio dos quais avaliamos e interferimos na
realidade. Além da valorização dos aspectos afetivos, o código trouxe também a
valorização da dinâmica colaborativa. A conciliação e a mediação presentes no
novo código são reflexo dessa mudança. E aponto aqui que, nesse sentido, que
para fazer face aos ditos novos paradigmas, devem ser mais do que encorajados
os procedimentos que contem com profissionais da Psicologia não só na função de
peritos, e mesmo de mediadores, mas também que contem com a colaboração dos
assistentes técnicos, imprimindo-se uma dinâmica cooperativa nas perícias.
Tudo em benefício de uma prestação jurisdicional em que a
colaboração dos operadores do Direito e dos operadores da saúde — e desses
entre si — tragam a necessária eficácia às delicadas demandas que tocam ao
Direito de Família.
Revista Consultor Jurídico, 24 de abril de 2016, 8h00
[1] Giselle
Câmara Groeninga é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da
Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade
Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário