história recente do país?
Ontem, mais de 250 mil pessoas tomaram as ruas do país para protestar. Só na cidade de São Paulo, foram 65 mil. O mote inicial dos protestos - o aumento de 20 centavos nas tarifas de ônibus - já ficou para trás. Foi a gota d'água. Da PEC 37 à preferência dos governos por investir em estádios ao invés de educação, passando pela corrupção na política, uma gama de temas levou os protestantes, a maioria jovens, às ruas. Numa das cenas mais lindas que jamais testemunhei, a juventude tomou o Congresso Nacional, em Brasília, hoje símbolo, no imaginário popular, do que a política representa de pior (alguém lembra a cena final de Tropa de Elite 2?).
É claro que a história não se escreve de um minuto para outro. Mas as manifestações anteriores - principalmente a terceira e a quarta - foram, em retrospecto, as premissas para o chamado Quinto Grande Ato contra o aumento das passagens, esse que foi, sem dúvida nenhuma, o ponto de virada do movimento.
Apenas lembrando: o terceiro protesto foi marcado por atos de vandalismo e depredação, praticados por sociopatas que se aproveitaram do anonimato que esse tipo de evento proporciona para extravasar suas neuroses (como escrevi no texto anterior, O sono da razão). Qualquer pessoa que conhece minimamente a realidade de São Paulo já podia prever o que aconteceria a seguir: assim como, em 2006, os ataques do PCC provocaram uma reação desproporcional e absolutamente brutal da polícia, era previsível que os abusos praticados por uns poucos dementes na terceira passeata levassem a uma reação extremada da polícia no quarto ato - principalmente porque os principais jornais de São Paulo, em seus editoriais, fomentaram a violência e o maior rigor da polícia contra os "vândalos".
Claro que a mesma imprensa que atiçou o governo e a polícia contra os manifestantes (tornou-se um clássico instantâneo no youtube a cena em que o apresentador Luís Datena rebola na gramática para que o público de uma pesquisa desaprove o movimento, enquanto o público continua a aprová-lo) passou a reclamar quando seus próprios repórteres começaram a ser agredidos. Pau que bate em Chico também bate em Francisco, principalmente quando não se sabe quem é um e outro. Depois que alguns repórteres apanharam da polícia, o discurso da grande mídia mudou. Os "vândalos" se tornaram "manifestantes", e a "defesa rigorosa da ordem" se transformou em "brutalidade policial".
Com os ventos midiáticos mudando de direção, engajar-se ficou cool. Arnaldo Jabor, que no dia anterior havia comparado o "ódio à cidade" dos manifestantes ("revoltosos de classe média que não valem 20 centavos") ao PCC, voltou atrás, num patético arremedo de mea culpa que não convenceu ninguém. Mais constrangedor foi ver um bando de globais que nunca se preocuparam um minuto com a violência policial cotidiana contra negros e pobres nas periferias pintando o olho de roxo e fazendo carinha de "#chatiado" porque UMA jornalista da Folha foi vítima de abuso policial - um oportunismo político de dar orgulho a qualquer Stalin wannabe. Ser politizado nunca foi tão legal.
Também era previsível que no Quinto Ato a polícia fosse moderada, dada a tremenda repercussão negativa dos abusos policiais cometidos na quarta passeata. Fazendo cosplay de oráculo, cheguei a tranquilizar algumas pessoas que tinham receio de ir ao protesto: "acho que a coisa vai ser mais tranquila justamente por causa da repercussão negativa da última", escrevi a uma amiga preocupada. Dito e feito.
Mas a adesão de quase um quarto de milhão de pessoas Brasil afora, isso ninguém poderia prever.
A falta de um foco específico nas passeatas, antes de ser um problema, talvez seja sua maior qualidade. Porque mostra que a juventude não suporta mais inúmeros problemas brasileiros, e não um problema específico. O Quinto Ato foi a explosão de uma panela de pressão, a gota d'água que faltava para o caldo entornar. E, ao contrário do ridículo movimento Cansei de 2007 (uma manifestação "política" capitaneada por Hebe Camargo, precisa dizer algo mais?), ontem o povo brasileiro mostrou à classe política que realmente está cansado - da violência, da corrupção, da impunidade, da precariedade da educação etc.
Impossível não lembrar o grande momento da minha geração, os protestos dos caras-pintadas contra o presidente Collor em 1992. A resposta ao desesperado apelo do então presidente na televisão ("não me deixem só") foi um abandono total e uma exigência maciça, por parte da juventude, de que ele deixasse o cargo.
Éramos a geração coca-cola, "os filhos da revolução, burgueses sem religião". Éramos o futuro da nação, há 20 anos. Hoje, somos o presente e essa nova geração - geração coca-zero? - é o futuro. Talvez, daqui a 20 anos, o dia 17 de junho de 2013 seja lembrado pelos livros de história como o ponto da virada, o momento em que o "chega!" deixou de ser discurso e passou a ser ato.
É claro que tudo depende de como serão as próximas manifestações. Mas arrisco - olha o cosplay de oráculo outra vez! - que, se os atos seguirem pacíficos, a adesão será cada vez maior. O apoio da população está garantido. As reivindicações são justas. Resta ver como a classe política vai reagir diante de um fenômeno tão raro, inusitado e - para os maus políticos, para quem ainda quer um Brasil "mais do mesmo", desigual, ineficiente, injusto - preocupante.
Memes não são só aquelas carinhas bobas que povoam o Facebook. O termo meme foi cunhado em 1976 pelo biólogo Richard Dawkins, no livro O gene egoísta. Significa uma unidade de informação - geralmente uma ideia - capaz de se autopropagar (o livro usa a curiosa expressão "vírus memético"). Pense numa ideia que "contamina" as pessoas que entram em contato com ela. Pense num povo subitamente "contaminado" pela ideia de que pode mudar a realidade de seu país - ideia que se alastra rapidamente, como um vírus poderoso. Um apocalipse zumbi às avessas.
O Primeiro Grande Ato, em 06 de junho, contou com 5 mil pessoas. O ato de ontem reuniu 250 mil - sem contar as inúmeras manifestações no exterior. Ao que parece, a sede por reformas estruturais no Brasil alcançou o status de meme. A velha classe política que se cuide!
Fundamental agora é que os protestos não descambem para a violência, como infelizmente ocorreu no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Em São Paulo, ontem à noite, na porta do Palácio dos Bandeirantes, houve um início de tumulto. Foi bonito ver os próprios manifestantes contendo os mais exaltados, ver a juventude, e não a polícia, acalmando os ânimos. Ver o movimento e o governo iniciando um diálogo. É preciso responder à pergunta fundamental: ok, chegamos até aqui. E agora?
Tudo depende do que virá a seguir. Os próximos dias - talvez semanas, quem sabe meses - darão o real sentido do belo ato de ontem. Se o Terceiro e o Quarto Ato se tornaram as premissas do Quinto, este talvez se revele a premissa de algo ainda mais grandioso. Os próximos atos determinarão se a juventude que parou o Brasil poderá dizer, daqui a 20 anos, "eu fiz história", ou se terá de se limitar a um melancólico "eu quase fiz história".Fonte: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/geracao-coca-zero-memes-e-um-novo-brasil/11393
Nenhum comentário:
Postar um comentário