terça-feira, 1 de julho de 2014

Princípio da solidariedade familiar

Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP, advogado, professor emérito da UFAL, ex-membro do Conselho Nacional de Justiça


A solidariedade, como categoria ética e moral que se projetou para o mundo jurídico, significa um vínculo de sentimento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado que impõe a cada pessoa deveres de cooperação, assistência, amparo, ajuda e cuidado em relação às outras. A solidariedade cresce de importância na medida em que permite a tomada de consciência da interdependência social.
         Cada uma dessas expressões de solidariedade surge espontaneamente, nas relações sociais, como sentimento. O direito republicano e laico, para poder tratar a todos igualmente, não costuma lidar diretamente com sentimentos e sim com condutas verificáveis, que ele seleciona para normatizar. Todavia, há quem sustente que uma das características da chamada pós-modernidade é justamente o retorno ao sentimento. O princípio jurídico da solidariedade recebe esses sentimentos como valores e os verte em direitos e deveres exigíveis nas relações interindividuais. Por exemplo, o Estatuto do Idoso transformou o dever apenas moral de amparo dos idosos em dever jurídico; ou seja, o sentimento social de amparo migrou para o direito, concretizando o princípio da solidariedade.
         No mundo antigo, o indivíduo era concebido como parte do todo social; daí ser impensável a idéia de direito subjetivo. Na tradição aristotélica, o conceito de política como uma esfera que abrange o Estado e a sociedade manteve-se sem interrupção até o início do século XIX. A partir daí, no mundo moderno liberal, o social separou-se do político e o indivíduo passou a ser o centro de emanação e destinação do direito; daí ter o direito subjetivo assumido a centralidade jurídica, ancorado em sujeitos abstratamente considerados iguais. Por isso, Hegel, que viveu o momento da transição, podia dizer que “na sociedade civil burguesa, cada um é fim para si mesmo e todos os outros não são nada” e que “esses outros são, portanto, meio para um fim individual”, o que se afigurou para ele como uma “eticidade perdida em seus extremos”.
         No mundo contemporâneo, busca-se o equilíbrio entre os espaços privados e públicos e a interação necessária entre os sujeitos concretos, despontando a solidariedade como elemento conformador dos direitos subjetivos. O pathos da sociedade de hoje, comprovado em geral por uma análise mais detida das tendências dominantes da legislação e da aplicação do direito, é o da solidariedade; ou seja, da responsabilidade, não apenas dos poderes públicos, mas também da sociedade e de cada um dos seus membros individuais, pela existência social dos outros membros da sociedade (Franz WIEACKER). Para o desenvolvimento da personalidade individual é imprescindível o adimplemento dos deveres inderrogáveis de solidariedade, que implicam condicionamentos e comportamentos interindividuais realizados num contexto social.
         Vindo do Corpus Juris Civilis, havia apenas, no direito privado, o conceito de solidariedade subsumido à espécie de obrigação, quando um dos credores pode receber do devedor a totalidade da dívida (solidariedade ativa), ou quando um dos devedores pode ser obrigado a pagar a dívida integralmente (solidariedade passiva), o que significa individualização do crédito ou do débito plurais. Desde os antigos, se utiliza a locução latina in solidum, com o significado de soma do todo. Mas, tem sido afirmado que o termo “solidariedade” apenas aparece na linguagem jurídica no início do século XVII, daí passando para a linguagem comum. Esse sentido estrito não é o mesmo do princípio fundamental da solidariedade no mundo contemporâneo, que se consolidou nas Constituições sociais do século XX, e cuja elaboração doutrinária (jurídica) é relativamente recente.
         A solidariedade, concebida como diretriz geral de conduta, no direito brasileiro, somente com a Constituição de 1988 inscreveu-se como princípio jurídico. Para Paulo BONAVIDES, o princípio da solidariedade serve como oxigênio da Constituição, conferindo unidade de sentido e auferindo a valoração da ordem normativa constitucional; – não apenas da Constituição, dizemos nós, pois, a partir dela o princípio se espraia por todo ordenamento jurídico.
         Antes de sua apropriação pelas ciências sociais e pelo direito, a solidariedade era sentida como dever moral ou religioso de fraternidade ou de caridade. É somente no fim do século XIX e início do século XX que aparece a concepção da solidariedade, com um discurso diferente, que não se confunde com caridade ou fraternidade. Para Ehrard DENNINGER a solidariedade não conhece limites substantivos ou pessoais; ela engloba o mundo e se refere à humanidade. Ela reconhece o outro não apenas como um “camarada” ou como um membro de um particular “nós-grupo”, mas antes como um “outro”, até mesmo um “estranho”. Isso distingue a solidariedade da “fraternidade”, disse esse autor.
         Ainda que anteriormente alguns estudiosos e políticos mencionassem a solidariedade, como princípio, deve-se a Léon BOURGEOIS sua primeira sistematização, com a obra Ensaio de uma Filosofia da Solidariedade, publicado em 1902, em seguida a um pequeno livro, Solidariedade, publicado em 1896, ambos na França. Os estudos marcadamente sociológicos influenciaram o direito público e privado, já nas primeiras décadas do século XX. No âmbito do direito civil, René DEMOGUE, na obra clássica “As noções fundamentais do direito privado”, de 1911, embora considerando as teses de Bourgeois ingênuas, aplicou a regra da solidariedade principalmente na afirmação da mais justa “repartição das perdas”, contribuindo para a progressiva evolução da responsabilidade civil, da culpa ao risco, além da afirmação, avançada para a época, de que “todo homem deve sempre ter direito a um mínimo de existência”.
         O mais importante nessa viragem rumo ao princípio jurídico da solidariedade, é a compreensão de que a solidariedade não é apenas dever positivo do Estado, na realização das políticas públicas, mas também que importa deveres recíprocos entre as pessoas, pois, como disse Bourgeois, os homens já nascem devedores da associação humana e são obrigados uns com os outros pelo objetivo comum. A imposição de solidariedade levou ao desenvolvimento da função social dos direitos subjetivos, inclusive a propriedade e o contrato, que se tornou lugar comum neste início de século XXI. Sem a solidariedade, a subjetividade jurídica e a ordem jurídica convencional estão fadadas a constituírem mera forma de conexão de indivíduos que permanecem juntos, mas isolados e distanciados da ética comunitária.
O princípio da solidariedade vai além da justiça comutativa, da igualdade formal, pois projeta os princípios da justiça distributiva e da justiça social. Estabelece que a dignidade de cada um apenas se realiza quando os deveres recíprocos de solidariedade são observados ou aplicados.
         Emergem da Constituição brasileira, os seguintes princípios aplicáveis ao direito de família: a) PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS: I - Dignidade da pessoa humana; II – Solidariedade familiar; b) PRINCÍPIOS GERAIS: III - Igualdade; IV - Liberdade; V - Afetividade; VI - Convivência familiar; VII - Melhor interesse da criança.
         A Constituição e o direito de família brasileiros são integrados pela onipresença desses dois princípios fundamentais e estruturantes: a dignidade da pessoa humana e a solidariedade. A solidariedade e a dignidade da pessoa humana são os hemisférios indissociáveis do núcleo essencial irredutível da organização social, política e cultural e do ordenamento jurídico brasileiros. De um lado, o valor da pessoa humana enquanto tal, e os deveres de todos para com sua realização existencial, nomeadamente do grupo familiar; de outro lado, os deveres de cada pessoa humana com as demais, na construção harmônica de suas dignidades.
         O macroprincípio da solidariedade perpassa transversalmente os princípios gerais do direito de família, sem o qual não teriam o colorido que os destacam, a saber, o princípio da convivência familiar, o princípio da afetividade e especialmene o princípio do melhor interesse da criança. Por esta razão, o princípio da solidariedade é observado quando o direito de convivência das crianças com seus parentes próximos não é obstado, ainda que contrarie os interesses de seus pais, como no caso do contato afetivo entre netos e avós, sobrinhos e tios.
         Permitam-me um parêntese esclarecedor. A consagração da força normativa dos princípios constitucionais explícitos e implícitos é um dos maiores avanços do direito brasileiro, principalmente após a Constituição de 1988, superando o efeito simbólico ou programático que a doutrina tradicional a eles destinava. A eficácia meramente simbólica frustrava as forças sociais que pugnavam por sua inserção constitucional e contemplava a resistente concepção do individualismo jurídico, que rejeita a intervenção dos poderes públicos nas relações privadas, inclusive do Poder Judiciário.
         O princípio é dotado de suporte fático hipotético necessariamente indeterminado e aberto, dependendo a incidência dele da mediação concretizadora do intérprete – principalmente do juiz -, por sua vez orientado pela regra instrumental da equidade, entendida segunda formulação grega clássica, sempre atual, de justiça do caso concreto.
  Como se vê, os princípios não oferecem solução única (tudo ou nada), segundo o modelo das regras jurídicas. Sua força radica nessa aparente fragilidade, pois, sem mudança ou revogação de normas jurídicas, permitem adaptação do direito à evolução dos valores da sociedade. Com efeito, o mesmo princípio, observando-se o catálogo das decisões nos casos concretos, em cada momento histórico, vai tendo seu conteúdo amoldado, em permanente processo de adaptação e transformação. A estabilidade jurídica não sai comprometida, uma vez que esse processo de adaptação contínua evita a obsolescência tão freqüente das regras jurídicas, ante o advento de novos valores sociais.
         Fecho o parêntese.
         O princípio jurídico da solidariedade resulta da superação do individualismo jurídico, que por sua vez é a superação do modo de pensar e viver em sociedade a partir do predomínio dos interesses individuais, que marcou a modernidade pós-revolucionária, com reflexos até a atualidade. Na evolução dos direitos humanos, aos direitos individuais vieram concorrer os direitos sociais, nos quais se enquadra o direito de família. Estudiosos das dimensões dos direitos humanos têm-nos classificados na primeira os direitos e garantias individuais, ou as liberdade públicas, com natureza negativa, ou seja, como oponíveis ao poder político. Na segunda estariam os chamados direitos sociais, como as garantias do trabalhadores e os que nossa Constituição enuncia no art. 6º (educação, saúde, moradia, lazer, segurança, previdência social etc). Na terceira, estariam exatamente os direitos de solidariedade, não só das pessoas em relação às outras, mas em relação ao meio ambiente em que vivemos, aos demais seres vivos e às futuras gerações.
         Os revolucionários franceses do final do século XVIII elegeram a liberdade, a igualdade e a fraternidade como valores supremos de transformação da sociedade e da busca da felicidade. Passados dois séculos, a Constituição de 1988, refletindo as atuais matrizes éticas da sociedade brasileira, substituiu a famosa tríade revolucionária pelos objetivos fundamentais de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I). Liberdade, justiça e solidariedade são objetivos, fundamentos e princípios que o Estado, a sociedade civil, as entidades – entre elas as familiares – e cada pessoa humana devem se empenhar em atingir, em processo de constante devir.
         O princípio da solidariedade contamina e determina o conteúdo dos dois outros princípios da tríade fundamental brasileira. Com efeito, a liberdade individual é funcionalizada à realização da solidariedade, “a promover o bem de todos” (art. 3º, IV, da CF), e não apenas de cada um. A justiça é principalmente material, voltada a “reduzir as desigualdades sociais” (art. 3º, III, da CF).
         Assim, podemos afirmar que o princípio da solidariedade é um dos grandes marcos paradigmáticos que caracterizam a transformação do Estado liberal e individualista em Estado democrático e social (por alguns, denominado Estado Solidário), com suas vicissitudes e desafios, que o conturbado século XX nos legou. É a superação do individualismo jurídico pela função social dos direitos.
         A regra matriz do princípio da solidariedade é o inciso I do art. 3º da Constituição. No Capítulo destinado à família, o princípio é revelado incisivamente no dever imposto à sociedade, ao Estado e à família (como entidade e na pessoa de cada membro) de proteção ao grupo familiar (art. 226), à criança e ao adolescente (art. 227) e às pessoas idosas (art. 230).
         A solidariedade familiar é fato e direito; realidade e norma. No plano fático, as pessoas convivem, no ambiente familiar, não por submissão a um poder incontrariável, mas porque compartilham afetos e responsabilidades. No plano jurídico, os deveres de cada um para com os outros impuseram a definição de novos direitos e deveres jurídicos, inclusive na legislação infra-constitucional. O Código Civil de 2002 avançou nessa direção, mas está muito aquém das demandas da contemporaneidade, impondo pugnar-se por avanços legislativos, preferencialmente em um corpo legal orgânico e sistemático, como a proposta de um Estatuto das Famílias autônomo, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família.
         A solidariedade do núcleo familiar compreende a solidariedade recíproca dos cônjuges e companheiros ou conviventes, principalmente quanto à assistência moral e material. O lar é por excelência um lugar de colaboração, de cooperação, de assistência, de cuidado; em uma palavra, de solidariedade. O casamento, por exemplo, transformou-se de instituição autoritária e rígida em pacto solidário. A solidariedade em relação aos filhos responde à exigência da pessoa de ser cuidada até atingir a idade adulta, isto é, de ser mantida, instruída e educada para sua plena formação social. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e o nosso ECA ressaltam a solidariedade entre os princípios a serem observados.
         Com fundamento explícito ou implícito no princípio da solidariedade, os tribunais brasileiros avançam no sentido de assegurar aos avós, aos tios, aos ex-companheiros homossexuais, aos padrastos e madrastas o direito de contato, ou de visita, ou de convivência com as crianças e adolescentes, uma vez que, no melhor interesse destas e da realização afetiva daqueles, os laços de parentesco ou os construídos na convivência familiar não devem ser rompidos ou dificultados.
         Desenvolve-se no âmbito do direito de família estudos relativos ao “cuidado como valor jurídico”, inclusive quanto à convivência intergeracional, como transmissora de valores e cultura. O cuidado desponta com força nos estatutos tutelares das pessoas vulneráveis, como a criança e o idoso, que regulamentaram os comandos constitucionais sobre a matéria. O cuidado, sob o ponto de vista do direito, recebe a força subjacente do princípio da solidariedade, como expressão particularizada desta.
O direito positivo tem procurado estabelecer teias legais de solidariedade para os que são considerados juridicamente vulneráveis nos âmbitos do direito de família ou conexos, a saber, as crianças e os adolescentes, os idosos, as vítimas de violência doméstica, os necessitados de alimentos. Quando o direito se depara com o protagonista que presume vulnerável, confere-lhe proteção, mediante catálogo de direitos preferenciais, ou pela interpretação necessariamente favorável, quando em colisão com o direito de outrem.
A doutrina brasileira tem proclamado a importância da repersonalização das relações familiares, que não pode ser entendida como novo modo de expressar o individualismo - o individualismo proprietário, vergastado pelo jurista italiano Pietro BARCELLONA -, mas como elevação da pessoa humana, em sua concreta dignidade, como alvo central do direito. A ideologia constitucionalmente estabelecida em 1988 é a do Estado Democrático de Direito, que supõe possibilidade de participação de todas as pessoas nos bens da vida, inclusive nos que não têm expressão patrimonial. Assim, o patrimônio deixou de ser protagonista principal do direito civil para qualificar-se como instrumento da existência das pessoas. Por seu turno, a solidariedade familiar não pode significar dissolução do indivíduo no todo familiar, desconsiderando sua dignidade pessoal.
Deparamo-nos com aparente paradoxo, pois, enquanto se proclama a exigência do princípio de solidariedade familiar, a evolução do direito de família acompanhou a progressiva expansão do princípio da dignidade da pessoa humana. No direito de família anterior, o objeto de tutela era exclusivamente a família matrimonializada, hierarquizada, legítima, entendida como um todo coletivo que girava em torno do chefe, não sendo seus integrantes, individualmente, destinatários qualificados das normas. O direito atual, em sentido oposto, alude à proteção da família “na pessoa de cada um dos que a integram” (art. 226, § 8º da Constituição). Assim, o grupo familiar permanece concebido como titular de direitos, mas tem de compartilhar essa titularidade com as titularidades de cada pessoa que o integra. É justamente a solidariedade (e não mais a autoridade do chefe) que permite a unidade familiar. 
         A solidariedade instiga a compreensão da família brasileira contemporânea, que rompeu os grilhões dos poderes despóticos – do poder marital e do poder paterno, especialmente – e se vê em estado de perplexidade para lidar com a liberdade conquistada. Porém, a liberdade não significa destruição dos vínculos e laços familiares, mas reconstrução sob novas bases. Daí a importância do papel da solidariedade, que une os membros da família de modo democrático e não autoritário, pela co-responsabilidade.
         O princípio da solidariedade incide permanentemente sobre a família, impondo deveres a ela enquanto ente coletivo e a cada um de seus membros, individualmente. Ao mesmo tempo, estabelece diretriz ao legislador, para que o densifique nas normas infraconstitucionais e para que estas não o violem; ao julgador, para que interprete as normas jurídicas e solucione os conflitos familiares contemplando as interferências profundamente humanas e sentimentais que encerram.
         O princípio da solidariedade, no plano das famílias, apresenta duas dimensões: a primeira, no âmbito interno das relações familiares, em razão do respeito recíproco e dos deveres de cooperação entre seus membros; a segundo, nas relações do grupo familiar com a comunidade, com as demais pessoas e com o meio ambiente em que vive. Exemplo da dimensão externa é a responsabilidade dos pais em relação aos danos cometidos pelos filhos menores a terceiros, que evoluiu da responsabilidade civil subjetiva, fundada na comprovação de culpa dos primeiros, para a presunção de culpa e, finalmente, como se vê no art. 933 do Código Civil, para a responsabilidade objetiva. A crescente opção do direito para a responsabilidade objetiva responde à valorização da solidariedade social, com a desvalorização correspondente da concepção individualista da culpa. Outro exemplo da dimensão externa é a inserção da família na grande tarefa da humanidade em defender o meio ambiente, inclusive para as futuras gerações (art. 225 da Constituição), às quais o direito confere titularidade jurídica, apesar de ainda não existirem. A solidariedade entre as sucessivas gerações se afirmou, no direito internacional, com a entrada em vigor da Convenção sobre a Diversidade Biológica, de 1992, com a adesão do Brasil.
         No vigente Código Civil, podemos destacar algumas normas fortemente perpassadas pelo princípio da solidariedade familiar: o art. 1.513 tutela “a comunhão de vida instituída pela família”, somente possível na cooperação entre seus membros; a adoção (art. 1.618) brota não de um dever oponível ao adotante, mas do sentimento de solidariedade; o poder familiar (art. 1.630) é menos “poder” dos pais e mais múnus ou serviço que deve ser exercido no interesse dos filhos; a colaboração dos cônjuges na direção da família (art. 1.567) e a mútua assistência moral e material entre eles (art. 1.566) e entre companheiros (art. 1.724) são deveres hauridos da solidariedade; os cônjuges são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos para o sustento da família (art. 1.568); o regime matrimonial de bens legal e o regime legal de bens da união estável é o da comunhão dos adquiridos após o início da união (comunhão parcial), sem necessidade de se provar a participação do outro cônjuge ou companheiro na aquisição (arts. 1.640 e 1.725); o dever de prestar alimentos (art. 1.694) a parentes, cônjuge ou companheiro, que pode ser transmitido aos herdeiros no limite dos bens que receberem (art. 1.700), e que protege até mesmo o culpado (§ 2° do art. 1.694 e art. 1.704), além de ser irrenunciável (art. 1.707) decorre da imposição de solidariedade entre pessoas ligadas por vínculo familiar.
         O Código Civil, entretanto, estabeleceu regras para as relações familiares que contrariam frontalmente o princípio constitucional da solidariedade. Exemplos frisantes: 1º. - a fixação de causas para a separação judicial fundadas na culpa dos cônjuges (arts. 1.572 e 1.573), apesar de o direito e a sociedade valorizarem cada vez mais a consideração objetiva da ruptura da vida em comum, que favorece o acordo solidário sobre as questões relevantes de convivência com os filhos, de alimentos e de partilha dos bens comuns; 2º - o da incompreensível imprescritibilidade do direito do marido de impugnar a paternidade do filho da mulher (art. 1.601), em prejuízo da identidade pessoal e social do filho e da integridade psíquica deste, notadamente quando já adolescente ou adulto, e em desconsideração do estado de filiação socioafetivo constituído; além de que é, sob a técnica jurídica, incongruente, pois as ações de estado “são prescritíveis quando o legitimado age para contestar ou modificar o estado de outrem”, como diz Pietro PERLINGIERI; 3º - O art. 1.611 impede que o filho reconhecido por um dos cônjuges possa residir no lar conjugal sem o consentimento do outro, prevalecendo o desejo individual sobre a solidariedade e o interesse do menor. 4º - A preferência pela guarda exclusiva e o correspondente direito de visita expressa visão individualista da primazia dos interesses de cada pai, contra o interesse do filho que é de continuar convivendo com ambos os pais separados.  
A aplicabilidade direta do princípio constitucional da solidariedade oferece ao intérprete a diretriz adequada para a solução de questões difíceis de direito de família, nas quais a controvérsia é a nota dominante na doutrina e na jurisprudência, inflectidas na prática do direito. Por exemplo: é grande a controvérsia acerca da permanência da obrigação alimentar, após o divórcio. São consistentes tanto as teses favoráveis quanto as desfavoráveis, nos planos jurídico, moral ou político. Argumenta-se com a inexistência de relação de parentesco entre os cônjuges e com o desaparecimento do dever de assistência entre eles, quando o casamento se desfaz. Se considerarmos, todavia, a ótica do princípio, veremos que a solidariedade familiar impõe efeitos posteriores ao casamento ou a transeficácia do dever de solidariedade, contraído durante a convivência familiar, em razão desta, pouco importando a causa do rompimento. Daí, foi correta a opção do Código Civil (art. 1.702), por admitir a continuidade da obrigação até quando o alimentando não mais necessitar ou constituir nova entidade familiar, contrariando orientação que se consolidava nos tribunais.
Outra dimensão normativa fundamental da aplicabilidade direta do princípio é a da interpretação em conformidade com a Constituição, das normas infraconstitucionais, ou seja, da interpretação dessas normas que melhor realiza os fins do princípio. E não apenas naquelas hipóteses de dúvidas ou ambiguidades, quando a presunção da constitucionalidade permite salvar a norma, aparentemente inconstitucional. Os estudos das hermenêuticas filosófica e jurídica contemporâneas parecem concluir para o entendimento de que qualquer norma jurídica depende de interpretação, pois apenas a situação concreta de sua incidência imprime-lhe, definitivamente, o sentido. Se assim é, então qualquer norma infraconstitucional de direito de família deve ser interpretada no sentido que melhor realize o princípio da solidariedade familiar, além do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e dos princípios gerais aplicáveis às relações familiares.  Por exemplo, a interpretação dos arts. 1.583 e 1584 do Código Civil, que tratam da guarda dos filhos, em razão da separação dos pais, deve observar o princípio do melhor interesse das crianças, que especializa o princípio da solidariedade. Assim, entre a guarda exclusiva e a guarda compartilhada, o juiz deve explorar as possibilidades de efetivação da segunda.    
Destaquemos, agora, algumas aplicações gerais do princípio jurídico da solidariedade familiar, além das já referidas.
         O imperativo da solidariedade impõe a repartição dos encargos da família, de acordo com as possibilidades e rendimentos de cada um. Essa diretriz é reforçada pelo art. 1.568 do Código Civil que estabelece a regra da proporção e não da igualdade, segundo o princípio da justiça distributiva de tratar desigualmente os desiguais. Ainda quando seja adotado o regime de comunhão universal de bens sempre haverá alguma desigualdade nos rendimentos de cada cônjuge. São considerados os bens de cada um, segundo o regime matrimonial, e os rendimentos para cálculo da proporção. No atual regime legal subsidiário da comunhão parcial, há bens comuns e bens particulares de cada cônjuge. A educação dos filhos merece destaque, em razão de constituir um dos mais elevados encargos financeiros assumidos pelas famílias.
         Ainda quanto aos alimentos. A mútua assistência envolve aspectos morais e materiais. Decorre do princípio da solidariedade familiar. Nenhuma convenção particular pode afastá-la, porque é uma exigência de ordem pública. A assistência moral diz respeito às atenções e cuidados devotados à pessoa do outro cônjuge, que socialmente se espera daqueles que estão unidos por laços de afetividade e amizade em seu grau mais elevado. Está vinculado à natureza humana de apoio recíproco e de solidariedade, nos momentos bons e nos momentos difíceis. É o conforto moral, o ombro amigo e o desvelo na doença, na tristeza e nas crises psicológicas e espirituais. Também é o carinho, o apoio, o estímulo aos sucessos na vida emocional e profissional. Certamente, são esses os elementos mais fortes do relacionamento conjugal ou amoroso, no seu cotidiano, cuja falta leva progressivamente à separação, mais do que qualquer outro fato isolado.
         Os alimentos já foram concebidos como imposição do dever de caridade, de piedade ou de consciência, contendo-se nos campos moral e religioso. A grande família, com filhos numerosos e agregados, era a única segurança de amparo aos que não estavam no mercado de trabalho, especialmente os menores e os idosos. No século XX, com o advento do Estado social, organizou-se progressivamente o sistema de seguridade social, entendendo-se ser de inarredável política pública, com os recursos arrecadados dos que exercem atividade econômica, a garantia de assistência social, de saúde e de previdência. Mas a rede pública de seguridade social não cobre a necessidade de todos os que necessitam de meios para viver, especialmente as crianças e os adolescentes, mantendo-se os parentes e familiares responsáveis por assegurar-lhe o mínimo existencial, especialmente quando as entidades familiares se desconstituem ou não chegam a se constituir. É jurídica, pois, a obrigação alimentar, seja na relação entre parentes seja na relação familiar (cônjuges ou companheiros). O direito empresta-lhe tanta força que seu descumprimento enseja, inclusive, prisão civil (art. 5º, LXVII, da Constituição).
         Assim, os alimentos constituem obrigação derivada do princípio da solidariedade, mas não é necessariamente “obrigação solidária”. A obrigação solidária não se presume; só há quando a lei ou a convenção das partes expressamente a estabelecerem.  O direito brasileiro, todavia, abriu única exceção expressa a regra da não solidariedade passiva da obrigação alimentar, quando se tratar de idoso. Estabelece o art. 12 do Estatuto do Idoso que “a obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores”. Justifica-se pela peculiaridade do idoso, para considerar como obrigados solidariamente todos os que constituem sua descendência. Trata-se de regra específica que não pode ser estendida às demais hipóteses, que reclamam os critérios de proximidade na relação de parentesco do principal obrigado e de complementaridade aos demais .
Relativamente à tutela e à curatela, o fundamento comum destas é o dever de solidariedade que se atribui ao Estado, à sociedade e aos parentes. Ao Estado, para que regule as respectivas garantias e assegure a prestação jurisdicional. À sociedade, pois qualquer pessoa que preencha os requisitos legais poderá ser investida pelo Judiciário desse múnus. Aos parentes, porque são os primeiros a serem convocados, salvo se legalmente dispensados.
A filiação socioafetiva é um dos mais importantes avanços do direito brasileiro na direção da solidariedade familiar e da primazia da dignidade humana, pois emerge de intensa demonstração de generosidade e respeito com o outro. Compreende-se na filiação socioafetiva a adoção, a posse de estado de filiação e a inseminação artificial heteróloga. Nessas hipóteses, a paternidade ou a maternidade é conscientemente assumida, ainda que o filho não seja biológico. A origem biológica exclusiva era indispensável à família patriarcal e exclusivamente matrimonializada, para cumprir suas funções tradicionais e para separar os filhos legítimos dos filhos ilegítimos. A família atual é tecida na complexidade das relações afetivas e solidárias, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo. A chamada verdade biológica nem sempre é adequada, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, especialmente quando esta já tiver sido constituída na convivência duradoura com pais socioafetivos (posse de estado) ou quando derivar da adoção.
         A união estável, no direito brasileiro, constitui-se independentemente de contrato ou qualquer ato jurídico emanado dos companheiros ou conviventes. Basta a situação de fato da convivência, cujo início pode ser provado em juízo por qualquer meio. Difere do modelo de união ou parceria civil, de outros países, como o pacto civil de solidariedade francês, que depende da celebração de contrato, o que o aproxima do ato jurídico exigível para o casamento. No Brasil, o contrato, se houver, é elemento de prova, mas não a prova decisiva, uma vez que o juiz pode desconsiderá-lo, quando se demonstrar que a situação de fato dele diverge. A união estável é, portanto, um ato-fato jurídico, que se caracteriza pela circunstância de o direito abstrair a vontade dos figurantes e apenas considerar o fato resultante. Esse modelo é muito mais protetor do convivente socialmente vulnerável (principalmente a mulher), e, pois, realiza melhor o princípio da solidariedade familiar.
         É tempo de concluir. 
         A obsessão cognitiva que caracterizou a modernidade desprezou o papel importante do sentimento, desde o famoso “penso, logo existo” de Descartes. A neurociência atual tem afirmado que para compreender a evolução do cérebro e do comportamento humanos, e o surgimento da própria humanidade, precisamos inverter o aforismo cartesiano para “sinto, longo existo”, pois o sentimento é o que nos distingue como humanos.
A pessoa é um ser que pertence ao mundo particular e público, à comunidade familiar e à comunidade universal, nos quais interage com dever de solidariedade. Torna-se humana apenas na convivência. Na perspectiva do pré-socrático Heráclito, a solidariedade se inscreve no princípio do porvir incessante das coisas. O princípio da solidariedade não é apenas novidade na aplicação do direito de família, mas dos demais ramos do direito. Há a resistência da inércia, da neofobia, da formação profissional vincada no individualismo jurídico e, por fim, em razão do discurso ideológico atual do neoliberalismo, que rejeita tudo o que signifique função social dos direitos. 
         A mudança revolucionária que houve no direito das famílias (a pluralidade é uma de suas características atuais), nas últimas décadas, acompanhando as transformações culturais de nossa sociedade, é exigente da assunção da ética da solidariedade e do respectivo princípio jurídico, para ocupar o vazio deixado pela superação do modelo patriarcal de família, que era fundado nos princípios da legitimidade, da autoridade, da exclusividade do matrimônio e da desigualdade de gêneros, de filhos e de entidades. Quando se dissolve o centro unificador, na pessoa do patriarca familiar, apenas o dever de solidariedade e afetividade pode manter os vínculos de pessoas livres e iguais.
         O direito, dizia IHERING, resulta de luta. Defende-se na luta o direito lesado. Mas o direito, máxime o mais pessoal de todos, que é o direito de família, é feito também na cooperação e no respeito à dignidade do outro, o que previne a luta. A realização cotidiana da dignidade da pessoa humana é pressuposto da solidariedade. A convivência familiar apenas é possível em ambiente solidário, expressado na afetividade e na co-responsabilidade.
         Particularmente quanto à criança, trabalhar por um presente e futuro melhores para ela, conjugando o princípio do melhor interesse com o princípio da solidariedade, significa lutar por uma sociedade mais democrática, igualitária e não-discriminatória, por um modelo de desenvolvimento social e ambientalmente sustentável, e por um mundo de paz e justiça social. Um terço da população brasileira é constituída de pessoas com menos de dezoito anos. As crianças são especialmente vulneráveis às violações de direitos e à iniquidade. Como adverte a UNICEF em seu relatório sobre a situação mundial da infância, “a pobreza restringe a habilidade das famílias e comunidades em cuidar de suas crianças”.
         A família brasileira, na atualidade, está funcionalizada como espaço de realização existencial das pessoas, em suas dignidades, e como locus por excelência de afetividade, cujo fundamento jurídico axial é o princípio da solidariedade. Quando o comando constitucional refere a “sociedade solidária” inclui, evidentemente, a “base da sociedade” (art. 226), que é a família.                 
         Viver significa comportar-se em cooperação, pois cada pessoa é una e múltipla. Em um mundo cada vez mais pessimista, sem utopias e ainda marcado pelo individualismo que dissolve as pessoas no mercado e que engendra a ilusão da autonomia e da liberdade, a solidariedade e o humanismo são janelas iluminadas de esperança de um mundo melhor.


Leia mais: http://jus.com.br/artigos/25364/principio-da-solidariedade-familiar#ixzz36Gg42Y5e

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